Mirtes Renata Santana de Souza teve uma infância feliz, ou “raiz”, como ela mesma define. Brincar de boneca, correr na rua, jogar bolinha de gude e empinar pipa estavam entre suas atividades preferidas. Ela desejava o mesmo para seu filho, Miguel Otávio. “Eu digo que era feliz e não sabia. Apesar de toda dificuldade financeira, minha infância foi muito boa, e eu tentava proporcionar isso também para o meu filho: que ele tivesse uma infância feliz, brincando, passeando… Me esforçava para que ele pudesse viver cada fase da vida da melhor maneira”, conta a ex-empregada doméstica, que, há cinco anos, sofre com a perda do menino Miguel.
Em 2020, o garoto caiu da sacada de um prédio de luxo no Recife, depois que a patroa da mãe, Sarí Corte Real, o colocou sozinho no elevador de serviço. Detalhe: Miguel tinha apenas 5 anos e só queria encontrar a mãe, que havia descido para passear com o cachorro da patroa nos arredores do prédio. “Não tem sido fácil. É uma saudade que chega a ser uma violência. As lembranças são muitas e agoniantes”, diz Mirtes, com os olhos marejados.
Hoje assessora parlamentar e prestes a se tornar advogada, Mirtes transformou a dor em luta. Mulher negra e periférica, ela busca reparação pela morte do filho Miguel, critica o Tribunal de Justiça de Pernambuco pela demora no veredicto e afirma ser vítima de racismo por parte do Judiciário. Na época da tragédia, Sarí Corte Real chegou a ser presa, mas pagou fiança de 20 mil reais e passou a responder ao processo em liberdade. Foi condenada, em primeira instância, a oito anos e meio de prisão. No entanto, em segunda instância, a Justiça reduziu a pena para sete anos. A defesa de Miguel recorreu da decisão e pede a pena máxima prevista para o crime de abandono de incapaz com resultado de morte: 12 anos de prisão.

Fora de Pernambuco. A futura advogada espera que o caso seja resolvido no STJ – Imagem: Arnaldo Sete/Marco Zero Conteúdo
O caso aconteceu em 2 de junho de 2020, no auge da pandemia de Covid–19. Como as escolas estavam fechadas devido ao lockdown, Mirtes não tinha onde deixar o filho e precisou levá-lo ao trabalho. Enquanto ela passeava com o cachorro da patroa, Miguel ficou sob a responsabilidade de Sarí, que estava no conforto de seu apartamento de luxo, fazendo as unhas. Diante da insistência do menino em procurar a mãe, Sarí o colocou sozinho no elevador e apertou o botão do andar que dava acesso à cobertura do prédio. No entanto, o elevador parou antes, no nono pavimento. Miguel desceu, subiu em um gradeado que protegia condensadores de ar-condicionado e caiu de uma altura aproximada de 35 metros.
A tragédia teve grande repercussão tanto no Brasil quanto no exterior, e chegou a ser denunciada à ONU como um caso de racismo sistêmico. “Faz cinco anos que venho lutando. Não só eu, mas toda a sociedade, organizações e movimentos que estão comigo, pedindo justiça por Miguel. Isso chega a ser desrespeitoso comigo e com a memória do meu filho. É um sentimento de tristeza e indignação”, afirma Mirtes, citando uma norma do próprio Judiciário que prevê prioridade nos julgamentos envolvendo crianças.
“Quais crianças têm prioridade, as brancas?”, questiona, ao lembrar o caso do menino Henry Borel, espancado e morto pelo padrasto, com a conivência da mãe. O episódio aconteceu em 2021, e os acusados foram rapidamente julgados, condenados e presos. “E o caso do meu filho, que foi bem antes e tem uma única ré, por que não foi resolvido? Isso é um exemplo do racismo dentro do Judiciário. Há vários outros casos envolvendo crianças pretas que se arrastam por anos, enquanto os de crianças brancas são resolvidos com rapidez. Fica escancarada a seletividade do sistema judicial.”
Ex-doméstica, ela formou-se em Direito para responsabilizar a antiga patroa por negligência na morte do filho
Na quarta-feira 2, o Tribunal de Justiça de Pernambuco negou o pedido de embargo apresentado pela defesa de Mirtes, que solicitava a condenação de Sarí à pena máxima de 12 anos. Na mesma decisão, a Justiça aceitou excluir do processo trechos de uma acusação contra Mirtes e sua mãe por supostos maus-tratos a Miguel, denúncia feita por uma testemunha de Sarí, que teria sido ouvida no processo de forma irregular.
Mirtes atribui a demora na resolução do caso à influência exercida sobre o Judiciário pernambucano, já que Sarí pertence a uma família tradicional e poderosa no estado. Na época da tragédia, Sarí era primeira-dama de Tamandaré, no litoral sul de Pernambuco, casada com o então prefeito Sérgio Hacker. “Enquanto o caso estiver na justiça estadual, não vai ter solução. Tenho esperança de que, quando for para o STJ, será resolvido.”
A dor e a ausência do filho transformaram profundamente a vida de Mirtes. Após a tragédia, ela foi acolhida por organizações sociais que lhe estenderam a mão e a ajudaram a iniciar uma verdadeira revolução interna. Trabalhou em uma ONG voltada à assistência à infância e, depois, em outra que atua no combate à violência contra jovens e mulheres. Recebeu formação política e sobre questões raciais – temas que, segundo ela, fortaleceram uma consciência de classe que já carregava antes mesmo de perder o filho.

Senzala moderna. O quarto da empregada é uma herança do período escravocrata – Imagem: José Afonso Jr.
Foi nesse período que Mirtes ingressou no curso de Direito, como bolsista em uma faculdade privada do Recife. Recentemente, alcançou nota máxima no Trabalho de Conclusão de Curso, com uma monografia sobre trabalho escravo contemporâneo, focada na realidade da trabalhadora doméstica. Seu objetivo agora é obter o registro na OAB, fazer pós-graduação e atuar como advogada trabalhista.
“Comecei a estudar Direito porque buscava mais conhecimento diante do que estava vendo no caso do meu filho. Era uma necessidade, por tudo que eu estava vivendo”, conta a quase advogada. “Tudo que venho fazendo hoje é para ajudar outras pessoas a não passarem pelo que eu passei, principalmente as trabalhadoras domésticas. Mesmo com os avanços na legislação, ainda há pontos que precisam ser melhorados, como o seguro-desemprego. Enquanto outros trabalhadores têm direito a cinco meses de benefício, uma trabalhadora doméstica recebe, no máximo, três parcelas.”
Mirtes também é coautora do livro Suíte Master, Quarto de Empregada, um projeto de José Afonso Jr., pesquisador e professor da Universidade Federal de Pernambuco. Lançada no fim de maio, a obra reúne um ensaio fotográfico realizado por Afonso Jr., com textos de Mirtes e da jornalista e também professora da UFPE Fabiana Moraes. A publicação denuncia a disparidade entre os espaços insalubres e negligenciados destinados ao “descanso” das domésticas e as suítes dos patrões.
“Quais crianças têm prioridade no Judiciário? As brancas?”, indaga
“É um modelo arquitetônico que posiciona o quarto de empregada na pior parte da planta: no fundo da casa, quente no verão, frio no inverno, sem ventilação, próximo a produtos de limpeza, ao barulho da máquina de lavar. Um espaço esquecido, uma herança direta da senzala”, explica o autor. Afonso Jr. também cita a PEC das Domésticas como um marco revelador do desprezo estrutural por esses espaços. Segundo ele, após a promulgação da emenda, que obrigou o registro formal das trabalhadoras domésticas, muitas famílias optaram por demiti-las e, em seguida, converteram o quarto de empregada em depósito de objetos indesejados. “O quarto da empregada é fruto de uma relação de subalternidade, de precarização, de desigualdade, de segregação. É o produto de um país construído em cima da ideia de escravidão, de exploração. Uma arquitetura que, no limite máximo, foi capaz de matar uma pessoa”, afirma, em referência à morte do menino Miguel.
“É a naturalização de duas violências: uma é o fato de um menino poder ser abandonado dentro de um elevador, uma criança que não tem senso de perigo. A outra é esse menino, negro, ser colocado no elevador de serviço”, observa Afonso Jr. “Em nenhum momento aquela senhora branca e rica, que estava fazendo as unhas enquanto mandava Mirtes passear com o cachorro dela, pensou em colocar a criança no elevador social, em vez de no de serviço. Da mesma forma, não passou pela cabeça dela descer para entregar o filho à mãe. Um animal desce no elevador acompanhado, mas um menino de 5 anos, não. E isso é visto com naturalidade? Isso é muito sério.” •
*Para saber mais sobre o caso do menino Miguel, confira a entrevista completa com Mirtes no canal de CartaCapital no YouTube.
Publicado na edição n° 1369 de CartaCapital, em 09 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A justiça tem cor?’