Depois de ler alguns dos livros da argentina Leila Guerriero, de 58 anos, dá para entender por que a mais famosa autora de não ficção da região tem o olhar sempre muito fixo no interlocutor. Seu olhar parece treinado para buscar, na expressão, nos traços e nos trejeitos, quem é a pessoa que está à sua frente e, talvez, sinais deixados pelo passado em seu corpo.

Aconteceu comigo no Hay Festival de Cartagena, realizado no início deste ano em Cartagena, na Colômbia. Leila me esperava com seus olhos de quem está sempre perscrutando. Ela estava no evento lançando A Chamada, que sai agora no Brasil pela Todavia.

Trata-se de um retrato completo, íntimo e perturbador de Silvia Labayrú, uma das poucas sobreviventes da Escola de Mecânica da Armada (ESMA), o maior centro de detenção e tortura da ditadura argentina (1976–1983).

O livro não apenas reconstrói o ano e meio em que ela foi torturada e violentada pelas forças de repressão, mas levanta uma discussão mais do que candente: a dupla vitimização sofrida por Silvia, assim como por outros sobreviventes. A pergunta, às vezes feita ao vento, às vezes diretamente a quem conta sua história, sugere de modo cruel: “O que foi que você fez para estar viva?”

A pergunta talvez tenha alguma razão de ser. Pela ESMA, afinal de contas, passaram pelo menos 5 mil prisioneiros. A maioria deles morreu sob tortura ou foi arremessada nos chamados “voos da morte” no Rio da Prata. Apenas 200 saíram com vida. Uma delas é Silvia Labayrú.

“Perguntar para uma pessoa o que ela fez para sobreviver em um campo de tortura é um enorme absurdo. Ninguém pode ser julgado pelo que diz ou faz para sobreviver”, diz Leila, categórica.

O caso é que, entre os sobreviventes, Silvia foi quem mais esticou a corda. Aceitou participar de um grupo que se infiltrou entre parentes de desaparecidos que, posteriormente, seriam presos e mortos. Aceitou também sair para jantar e até dançar com repressores, em troca de poder ver sua filha (nascida cinco meses depois de sua captura).

E, por fim, algo nada menor: teve a bebê entregue, após o parto, à própria família, algo incomum. Os militares, em geral, retiravam os bebês de mães ou pais considerados “subversivos” para entregá-los a famílias de outros militares.

Ela também conseguiu, ao fim de um ano e meio, ser libertada e obter permissão para sair do país com a criança. Ambas partiram para a Espanha, onde Silvia passa a maior parte de sua vida até hoje.

“Uma vítima é sempre uma vítima”, diz Leila, que, em sua investigação, encontrou vários testemunhos de esquerda que carregam um olhar acusatório para sua personagem: “Como aceitou fazer tudo isso?”, “Por que não tomou a pílula de cianeto?” Silvia carregava uma delas no bolso da calça jeans com que foi capturada, mas não a tomou.

A Chamada. Leila Guerriero.  Tradução: Silvia Massimini Felix. Todavia (464 págs., 109,90 reais) – Compre na Amazon

Leila considera absurdo questionar os que optaram por colaborar à força para sobreviver. E mais: fecha a cara e trata o interlocutor como se ele compactuasse com a atitude apenas por fazer a pergunta.

Para ela, uma coisa era sofrer nas mãos dos militares, outra era ser atacada pelos próprios ex-companheiros por fazer escolhas que lhe permitissem salvar a própria vida e evitar que sua filha ficasse órfã: “Na verdade, me espanta como ainda hoje exista quem possa pensar assim, que possa apontar o dedo para ela do mesmo modo que os militares”.

Realizado a partir de mais de 200 entrevistas e visitas aos locais onde ocorreram as torturas e conversas com sobreviventes, A Chamada é uma aula de jornalismo literário.

Ao longo de um ano e meio do período pandêmico, Leila reuniu-se com Silvia, em sua casa, em Buenos Aires, e em bares e cafés de Madri. A história é construída a partir de uma teia de lembranças, com passado e presente entrelaçados. Leila detalha não somente o horror do cativeiro, mas as contradições da memória de cada um.

Em 29 de dezembro de 1976, Silvia ­Labayrú, com 19 anos e grávida de cinco meses, foi sequestrada pela ditadura argentina. Filha de um militar e militante da guerrilha dos Montoneros, chegou à ­ESMA com uma pistola na cintura. Nos sótãos úmidos e escuros do centro clandestino de detenção, sofreu torturas com choques elétricos nos seios e foi estuprada.

Seu caso, junto ao de outras duas sobreviventes que quiseram contar suas histórias, transformou-se em uma causa à parte nos julgamentos que a Argentina vem conduzindo desde o fim da ditadura. O militar que abusou fisicamente dela foi condenado também por crimes sexuais. Essa tipificação passou a ser tratada separadamente apenas há cinco anos, mas já levou à prisão ou ao aumento das penas de pelo menos cinco repressores.

O comandante da repressão na ESMA, Jorge “Tigre” Acosta, disse-lhe que, para demonstrar que não odiava os militares e que estava se recuperando, deveria se relacionar com um oficial: “Vão te estuprar e você tem que se deixar estuprar”, relata Labayrú a Leila.

Quando, por fim, chegou à Espanha, esperava ser acolhida por outros exilados, mas acabou sendo julgada por eles. “Muitos companheiros preferiam que ela tivesse cometido suicídio”, diz Leila.

Leila faz questão de reforçar que Silvia não ficou presa ao passado. Aos 65 anos, voltou, inclusive, a se relacionar com um antigo namorado: “Ela viveu o suficiente para que o que lhe aconteceu na ESMA não fosse a coisa mais importante de sua vida”. •

Publicado na edição n° 1369 de CartaCapital, em 09 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘“O que você fez para estar viva?”’

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Last Update: 03/07/2025