O pensador norte-americano Mike Davis (1946–2022), nascido na Califórnia, se estabeleceu no panorama crítico ocidental como uma espécie de profeta. Atento aos desdobramentos nefastos da desigualdade social e econômica, ele sempre se mostrou também muito propositivo no que dizia respeito às estratégias de resistência.

Além disso, o autor cultivou um estilo acessível e dinâmico. Nas mais de 20 obras que deixou, sempre conseguiu aliar informação factual com sensibilidade narrativa.

Cidades Mortas, livro de 2002 que acaba de ser relançado no Brasil, conclui uma trilogia sobre a vida nas cidades que se iniciou com Cidade de ­Quartzo – Escavando o Futuro em Los Angeles ­(Boitempo Editorial), de 1990, e continuou com Ecologia do Medo, de 1998.

Usando de exemplo cidades como Los Angeles, Las Vegas e San Francisco, Davis critica o modelo de desenvolvimento que ignora a sustentabilidade e o bem-estar. Não é nada difícil reconhecer sua perspectiva em nosso contexto brasileiro.

O olhar de Davis é sempre multifocal. Ele utiliza mapas e fotografias, notícias recentes de jornal e tratados filosóficos do século XIX, comentando tanto a construção dos arranha-céus quanto o choque entre as placas tectônicas.

O pano de fundo permanente é, contudo, a preocupação com as condições de vida do indivíduo nas sociedades, uma vida que, em sua visão, deve ser fundada na liberdade e na dignidade.

Davis enfatiza que a noção de ideias “puramente científicas” é uma falácia. Toda decisão ou encaminhamento tem um objetivo político, seja no que diz respeito ao acesso aos recursos hídricos dos territórios seja no acesso à Lua ou a Marte.

Quando discute os testes realizados pelo “Corpo de Guerra Química” dos Estados Unidos, em 1943, Davis traça uma rede de conexões que chega ao cinema de Walt Disney e às relações subterrâneas entre Berlim e o estado de Utah.

Já quando discute a especulação imobiliária em Los Angeles, o pensador – de formação marxista – retoma eventos que dizem respeito às marchas pelos direitos civis nos Estados Unidos e, de forma geral, as tensões raciais inscritas na própria essência do país.

É devido à dificuldade de dar conta dessas conexões que Davis, frequentemente, trabalha com cenas específicas.

Cidades Mortas. Mike Davis. Tradução: Alves Calado. Civilização Brasileira | Paz&Terra. (560 págs., 129,90 reais)

Uma bastante potente é aquela da manhã de fevereiro de 1994 em que Bill Clinton­ foi despertado com a notícia da “explosão de um fragmento de asteroide”, equivalente à “detonação de um artefato nuclear de 200 quilotons”. Tratava-se do choque do cometa Shoemaker-Levy com Júpiter.

Outra, igualmente marcante, é a da noite de domingo, em setembro de 1960, em que seis mil fãs “tiveram sorte de conseguir ingressos para ouvir Ray Charles no Hollywood Bowl”, em Los Angeles, na Califórnia.

A partir dessas cenas, Davis reconstrói contextos e desenvolve seus argumentos, mostrando a rede de eventos interconectados que chegam até nós como se fossem, simplesmente, a “realidade”.

No primeiro caso, Davis parte de um asteroide para refletir sobre uma transformação de paradigma no que diz respeito às ideias sobre “eventos de extinção em massa”.

No caso do concerto de Ray Charles, o evento serve de ponto de partida para uma arqueologia muito precisa das tensões políticas e raciais na Califórnia do início dos anos 1960.

Pouco a pouco, com a leitura dos ensaios reunidos em Cidades Mortas, vamos percebendo que existe uma força motriz por trás do acúmulo de cenas apresentado por Davis.

Um de seus objetivos principais é o de reforçar a ideia de que precisamos estar atentos às camadas políticas dos eventos. De certa forma, as notícias nos jornais contam sempre duas histórias: uma que é manifesta e evidente, e outra, subjacente e cifrada, que requer tempo e paciência para ser descoberta.

Trata-se de uma lição que extrapola a especificidade de certos eventos, permanecendo útil para qualquer época e contexto histórico. •

Publicado na edição n° 1369 de CartaCapital, em 09 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A vida sob os arranha-céus’

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 03/07/2025