O intervalo de quase dois meses entre o primeiro e o segundo turno no Equador transformou-se em uma pedra no sapato do atual presidente e candidato à reeleição Daniel Noboa. A opositora Luisa González, advogada progressista que representa a Revolução Cidadã, do ex-mandatário Rafael Correa, tem conseguido galvanizar o sentimento de cansaço da população, afetada pela constante falta de energia, pelo crescimento raquítico da economia e por uma onda de violência estimulada pelo Estado. “O desafio de González é captar o apoio da esquerda mais radical e consolidar o voto de protesto”, avalia o cientista político Christian Reyes.
Nas últimas semanas, a demora em amparar as vítimas de inundações no país, que provocaram 18 mortes, e a reafirmação da proposta de permitir a entrada de forças estrangeiras para combater as organizações criminosas aumentaram a insatisfação popular. Noboa, herdeiro de uma das famílias mais ricas do país, conta, no entanto, com o voto de confiança de uma parte do eleitorado, baseado no argumento de que não houve tempo para colocar o país nos trilhos. O atual presidente cumpriu um mandato-tampão de um ano e meio após a renúncia de Guilherme Lasso e da dissolução do Parlamento. Em 2023, venceu justamente González por uma margem apertada nas eleições antecipadas.
Os 1,3 mil assassinatos registrados no início deste ano, o mais violento da história, tisnam, porém, a imagem de “xerife” de Noboa. As áreas litorâneas, mais afetadas pela onda de crimes, tendem a votar na esquerda, enquanto os moradores da região serrana apoiam o atual presidente. A divisão geográfica e política estimulou uma série de episódios racistas capitaneada por montanheses. Zamora e Jaramijo retratam o contraste entre o mar e a montanha. Na primeira, o candidato à reeleição registra 70% das intenções de votos. Na segunda, a opositora chega a 83%. “Sempre houve racismo e criminalização dos corpos negros e periféricos, incluindo os mestiços e os cholos. Recai sobre a costa uma visão estigmatizada comparável ao preconceito contra as favelas no Brasil”, compara a escritora Yuliana Ortiz Ruano, nascida em Esmeraldas e vencedora do prêmio Joaquín Gallegos Lara, o mais prestigiado da literatura nacional, com o livro Febres de Carnaval, lançado em 2022.
Em novembro, num caso de repercussão internacional, o assassinato de quatro menores sem qualquer vínculo com a criminalidade em Guayaquil, encontrados incinerados e com sinais de tortura após serem detidos por militares, ampliou a revolta popular contra a repressão estatal. As forças armadas, manchadas pela denúncia da existência dos chamados “narcogenerais”, envolvidos com o tráfico de drogas, enfrentam agora a cobrança pela punição dos 16 militares apontados como responsáveis pelo assassinato das crianças, presos desde fevereiro. “A violência é sem precedentes. Atualmente muitos jovens são capturados pela delinquência numa conjuntura de total falta de oportunidades. A primeira vez que os nossos territórios tiveram a presença do Estado foi nas administrações de esquerda. Houve irregularidades, mas o diálogo com as comunidades era permanente naquela época”, diz Ruano.
O país vai mal em outros aspectos. Cerca de 40% dos 18 milhões de equatorianos vivem na pobreza, extrema ou não, segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censo. “Em nosso primeiro ano no poder organizamos e corrigimos rumos para enfrentar o caos que recebemos das administrações anteriores. Estabilizamos a economia e combatemos sem medo as facções criminosas. Por isso, muitos partidos e setores estão conosco”, justifica o deputado Eduardo Castillo, da Ação Democrática Nacional, segunda maior bancada, atrás do grupo da Revolução Cidadã, e apoiador de Noboa.
A oposição explora o descontentamento com a economia e com a violência estatal
As turbulências políticas dos anos recentes levaram a sociedade civil a assumir um papel mais ativo. No fim do ano passado, moradores da região de Napo, na Amazônia equatoriana, impediram a construção de um megapresídio na área, uma das ideias mirabolantes do atual governo inspirada em Nayib Bukele, o projeto de ditador que comanda El Salvador. Recentemente, a venda do campo de petróleo de Sacha a um consórcio estrangeiro foi alvo de contestação de diversos segmentos, que exigem a revisão do contrato. Os problemas energéticos e ambientais estão no centro das atenções desde os apagões de mais de 14 horas diárias no ano passado.
À frente da reação aparece o movimento indígena, crucial na derrocada do projeto neoliberal do antecessor Lasso. No primeiro turno, Leonidas Iza, dirigente da Confederação das Nacionalidades Indígenas, ficou em terceiro lugar, com 5% dos votos. Se estivessem unidos, o progressismo urbano e as bases de representação dos povos originários teriam se aproximado da vitória ainda em fevereiro. “Existe uma agenda compartilhada entre esses campos sobre a importância dos investimentos públicos e do desenvolvimento. Além disso, as novas gerações são menos reativas à esquerda e González marca um estilo que se distancia de Correa”, acredita Hector Rodriguez, deputado eleito em Quito.
O voto feminino pode ser outro fator a desequilibrar a balança. No fim de semana, ruas da capital e de outras localidades foram tomadas durante as comemorações do Dia Internacional da Mulher. No Equador, a ativista e médica Matilde Hidalgo tornou-se a primeira latino-americana a votar numa eleição nacional em 1924. Apesar desse avanço, mais de cem anos depois, nenhuma mulher ocupou o cargo de presidente da República.
No primeiro turno, apenas 19 mil votos separaram Noboa, que chegou à frente, de González. As pesquisas mais recentes dão ligeira vantagem à oposição. Mas ainda há muita água para rolar debaixo da ponte. Há um mês da definição, os concorrentes disputam para ver quem chegará com mais fôlego em 13 de abril, não somente para vencer a eleição, mas para governar um país em constante instabilidade. •
Publicado na edição n° 1353 de CartaCapital, em 19 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Vai virar?’