Dois dias depois de ter sido diplomaticamente surrado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e pelo vice, JD Vance, no Salão Oval da Casa Branca, Volodymyr Zelensky procurou refúgio nas asas da Europa. No sábado 1º, foi recebido com um caloroso abraço do primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, que lhe disse, diante das câmeras que espocavam dezenas de fotos: “Você tem apoio total em todo o Reino Unido”. A mensagem foi reiterada no dia seguinte pelo rei Charles, num encontro em Sandringham.
Os gestos se repetiram nos dias seguintes, com quase todos os outros líderes europeus a acolher e respaldar o presidente da Ucrânia em público, após ele ter sido abandonado na sarjeta em Washington. Desde que tomou posse, em janeiro, Trump afastou-se da Europa e se aproximou da Rússia. Embora a extensão completa desse movimento ainda seja desconhecida, os líderes europeus preferiram adiantar-se e agir como se a perda do mais poderoso e confiável aliado fosse definitiva e irreversível.
A preparação consiste em redirecionar recursos para o complexo industrial militar europeu diante do que o continente percebe como uma ameaça irrefreável da Rússia. Se os EUA não são mais estáveis e confiáveis como antes, então caberá à região proteger a si mesma, é o que se percebe no discurso uníssono de quase todos os líderes, com exceção do primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, que preferiu não subscrever a declaração final do encontro dos 27 líderes na terça-feira 4, em Bruxelas, quando foi anunciado um plano de 800 bilhões de euros, cerca de 5 trilhões de reais, para rearmar a região até 2030.
A ideia de uma ruptura com os EUA animou um debate sobre a própria concepção de identidade europeia, que vai além da Otan, pois engloba a Ucrânia, não integrada à Aliança do Tratado do Atlântico Norte. E vai além da União Europeia, pois inclui o Reino Unido, que saiu do bloco em 2020. É como se o Velho Continente quisesse retomar um fio da meada de sua própria essência, depois de décadas à sombra da tutela norte-americana que, sob Trump, tem perdido o sentido.
Ninguém descreveu esse afastamento transatlântico de forma tão assertiva quanto o senador francês Claude Malhuret, que, na quarta-feira 5, subiu à tribuna da Assembleia Nacional, em Paris, e declarou: “Nós estamos em guerra contra um ditador”, em referência ao presidente russo, Vladimir Putin. Malhuret emendou: “Nós enfrentamos agora um ditador apoiado por um traidor”, sobre Trump. Três dias antes do discurso de Malhuret, o presidente francês, Emmanuel Macron, havia dito em um pronunciamento em cadeia de rádio e tevê que seu país considera a Rússia uma ameaça para a França e a Europa, e que o arsenal atômico francês está à disposição para proteger o continente.
“Nós enfrentamos agora um ditador apoiado por um traidor”, disse um senador francês sobre Putin e Trump
“Ainda há pessoas que querem voltar aos tempos de Napoleão, esquecendo-se de como tudo acabou”, reagiu Putin, em Moscou. “Ao contrário de seus antecessores, que também queriam lutar contra a Rússia – Napoleão, Hitler –, o senhor Macron não age com muita elegância, porque ao menos eles disseram sem rodeios: ‘Precisamos conquistar a Rússia, precisamos derrotar a Rússia’”, afirmou o chanceler russo, Sergei Lavrov. As comparações históricas foram logo refutadas por Macron, que lembrou um fato evidente: desta vez, foi a Rússia que invadiu um país europeu, a Ucrânia, ao contrário das incursões do passado mencionadas por eles.
A guerra verbal é o estágio mais barato dessa confrontação que, para ir além do discurso, vai precisar da injeção de recursos fabulosos por parte de um continente economicamente cansado e sem perspectiva de crescimento. Os EUA são responsáveis por 16% do financiamento da Otan. A aliança tem 32 participantes, dos quais 24 cumprem com a obrigação de investir ao menos 2% do próprio PIB em defesa. Se um dia precisar, de fato, cobrir os aportes norte-americanos em sua totalidade, a Europa precisaria injetar, no mínimo, 5% do PIB.
A França é o segundo maior exportador de armas do mundo (9,6% do total), na frente da Rússia (7,8%), mas muito atrás dos EUA (43%). Desde a invasão russa à Ucrânia, em 2022, a Europa aumentou em 155% sua importação de armas, e esse porcentual deve crescer muito nos próximos cinco anos. Um dos motivos é a dúvida que Trump suscita entre seus aliados, incluídos principalmente os países asiáticos, sobre se os EUA seguirão como um fornecedor estável de material e de tecnologia militar, ou se é melhor começar a dividir seus ovos na cesta mais previsível da Europa.
Quando recebeu Zelensky em Londres, Starmer anunciou imediatamente a liberação de 2,26 bilhões de libras em apoio militar à Ucrânia, o equivalente a mais de 19 bilhões de reais. Na mesma semana, a Alemanha decidiu que seus gatos militares, daqui em diante, serão contabilizados fora do teto, o que dá amplos poderes de investimento no setor. Na França, Macron também anunciou a realocação de recursos para a área militar, mas disse que, por enquanto, não prevê novos impostos para financiar os gastos.
A União Europeia tinha uma regra segundo a qual nenhum país do bloco poderia registrar déficit público superior a 3% do PIB, mas a norma ficou no passado. O bloco não só derrubou a meta como abriu uma linha de financiamento de 150 bilhões de euros (955 bilhões de reais) para os integrantes interessados em se armar. Atualmente, 35 nações enviam material militar para a Ucrânia, a maioria é de países europeus, mas 45% de todo o arsenal bélico ainda chega dos EUA. O corte feito por Washington, em vigor, só começará a ser sentido de fato no verão no Hemisfério Norte, a partir de junho. Até lá, se a guerra continuar, a tendência é haver uma transição, com a Europa empenhada em compensar a parte norte-americana. Na quinta-feira 6, pela primeira vez, os ucranianos usaram os jatos Mirage 2000 enviados pela França no início de fevereiro. •
Publicado na edição n° 1353 de CartaCapital, em 19 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Por conta própria’