O pescador tem dois amor/ Um bem na terra, um bem no mar. A possibilidade de perder uma dessas paixões, exaltadas na inesquecível canção de Dorival Caymmi, aterroriza moradores do Sítio Conceiçãozinha, uma das mais antigas comunidades caiçaras do Guarujá, com 5 mil habitantes e cerca de cem pescadores que sobrevivem da pesca artesanal. Há poucos dias, eles notaram uma movimentação de operários da construção civil em um atracadouro da TEG, joint venture formada pelas multinacionais Cargill e Louis Dreyfus para o escoamento da produção de grãos. Acreditavam tratar-se de uma obra de expansão do terminal portuário privado, que, em 2023, instalou mais um bloco de amarração para os gigantescos navios que circulam pelo canal do Estuário de Santos. O temor converteu-se em pânico com o boato de que o empreendimento fecharia o acesso da comunidade ao mar. Atualmente, resta apenas uma estreita faixa de 400 metros.
Desde a instalação do novo bloco de amarração, os pescadores reclamam de restrições à navegação, devido à circulação dos grandes navios, e de um incomum aumento da fiscalização da atividade pesqueira pelas autoridades locais, com o frequente confisco de redes e outros instrumentos de trabalho. Durante a construção, o impacto dos bate-estacas provocou rachaduras em casas de alvenaria – ainda há moradias de madeira sobre palafitas. Temendo perder uma das poucas fontes de renda da comunidade, os moradores apresentaram uma queixa ao Ministério Público, com o apoio de entidades de defesa dos direitos humanos e de pesquisadores da Unifesp. A partir da denúncia, a promotora Almachia Zwarg Acerbi, do Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente, instaurou um inquérito para investigar a regularidade das licenças ambientais. Segundo o advogado Benedito Roberto Barbosa, do Centro Gaspar Garcia, o MP recomendou a suspensão da obra – mesma sugestão feita pelo então ministro dos Portos e Aeroportos, Márcio França, após ouvir as queixas dos trabalhadores da região. No entanto, a TEG ignorou os apelos e seguiu com a construção, com o aval da Autoridade Portuária de Santos.
O bairro está quase totalmente cercado por empresas multinacionais. De um lado estão as instalações da Cargill; de outro, o terminal portuário da Cutrale, maior produtora de suco de laranja do Brasil. Atrás, fica a Dow Chemical Company, indústria da área de química e petroquímica. O Sítio Conceiçãozinha também é cortado por uma linha de trem graneleiro, que restringe o acesso por terra. Fundada nos anos 1920, a paupérrima comunidade conquistou há pouco tempo a regularização fundiária de suas ocupações, então clandestinas, com títulos entregues em 2009. Entre seus ilustres ex-moradores está o presidente Lula. Pelas vielas da comunidade, muitos relatam com orgulho que a família do chefe do Executivo viveu ali após migrar do Nordeste para o litoral de São Paulo.
O bairro é cortado por uma linha de trem graneleiro e está cercado por instalações de multinacionais
Secretário da União de Pescadores de Conceiçãozinha, a Unipesc, Newton Rafael Gonçalves, de 76 anos, é um dos moradores mais antigos do bairro. Ao receber a reportagem, exibe envaidecido um mapa da comunidade desenhado pelo geógrafo Aziz Ab’Saber, responsável pelos estudos ambientais que embasaram a titulação da terra. Com os olhos marejados, aponta para a margem de Santos e relembra: “A vida acontecia toda no canal”. Com a chegada da Cargill, na década de 1980, o pescador de caranguejos diz que o cenário mudou. “Tiramos nosso sustento da maré. Não importa a miséria. Se tiver como pescar, ninguém vai passar fome.”
Desde 2023, Seu Newtinho, como é conhecido, está em pé de guerra com as empresas que controlam os terminais portuários. “O canal está muito poluído. Tenho até medo de vender um caranguejo que se cria nessa água”, explica. Hoje, ele une-se a outros pescadores para dividir os custos do óleo diesel usado nos barcos para buscar o sustento em águas mais distantes. Mas nem todos têm essa possibilidade, e é por isso que luta para manter o acesso ao canal. Durante uma caminhada pela comunidade, alguns trabalhadores relataram as dificuldades que vêm enfrentando. Receosos de represálias das companhias, nem todos querem se identificar.
Há poucos dias, Cassius Aiala teve suas redes de pesca apreendidas. “A Capitania dos Portos confiscou e a PM botou fogo nelas”, queixa-se. Segundo ele, há uma ordem informal para os pescadores não trabalharem mais no canal. “Querem que a gente vá para o mar. Com o preço do diesel, não tenho condição. Desde moleque a gente pesca aqui”, argumenta. Com rede emprestada, tem conseguido se virar, mas teme uma nova apreensão. Ao contrário de Newtinho, ele já se deu por vencido: “O peixe maior sempre engole o menor. Não adianta brigar”. Sobre uma caixa de isopor, um colega vendia peixes-espada, pernas-de-moça e sardinhas, recém-pescados. Confirmou o relato: “Está difícil. A Cargill não está deixando pescar aqui. Se nos encontram no canal, chamam o ‘caveirão’ e apreendem nossas redes”. Caveirão é como eles chamam a Polícia Militar Ambiental.

Sítio Conceiçãozinha. O bairro que acolheu a família de Lula ainda tem casas em palafitas. Newton Gonçalves resiste. Já Igor Jesus decidiu abandonar a pesca – Imagem: Luca Meola
Na rua à beira-mar, algumas casas ainda apresentam fissuras, que os moradores atribuem ao impacto dos bate-estacas. A residência de Maria da Glória Ramos foi danificada, mas ela preferiu não reivindicar indenização. Segundo ela, a experiência vivida por sua mãe, uma senhora de 95 anos, já foi humilhante o suficiente. “A casa dela ficou toda rachada. Reclamamos à empresa, mas os funcionários disseram que já estava assim antes da obra. Insinuaram que estávamos nos aproveitando da situação”, diz, indignada. Moradora do Sítio Conceiçãozinha há mais de 50 anos, Maria da Glória lembra das dificuldades enfrentadas pela comunidade ao longo das décadas, até a conquista do asfaltamento de quase todas as ruas e a estruturação de um comércio local ativo, com salões de beleza, farmácias, adegas, mercadinhos e bares. “O ônibus escolar para as crianças chegou após muita pressão da União dos Pescadores”, comenta Newtinho.
Igor Gonçalves Abreu de Jesus, de 27 anos, mora com a mãe, duas irmãs e uma sobrinha pequena. Em meio às obras no terminal portuário, abriu-se uma enorme fissura no teto da casa da família. A reparação oferecida pela empresa foi parcial. “Não queriam colocar uma viga nova. Não aceitamos e tivemos de pagar a metade do valor da reforma”, explica. Segundo ele, a vizinha enfrentou uma situação ainda pior. “Feito de qualquer jeito, meses depois a construção desabou.” Hoje, ela vive no que restou de um casebre de palafita, próximo a um esgoto a céu aberto.
Nascido e criado no bairro, Igor, assim como muitos outros jovens, aprendeu a pescar com o pai e exerceu a profissão até a morte dele, durante a pandemia. O trauma o fez perder o gosto pela pesca, e ele precisou se reinventar. Fez da paixão pela luta uma nova profissão e, hoje, é professor de muay thai. Ele conta que a situação piorou nos últimos anos, e sua maior tristeza é ver a poluição. “O mar até mudou de cor”, diz, olhando para o local onde, há poucos dias, houve um vazamento de óleo e ainda era possível observar as boias de contenção. “Quando estoura um barril de amônia ou de cloreto, aqui fica insuportável. O cheiro é tão forte que a gente não aguenta ficar dentro de casa. Precisa ir para longe, até passar.”
A poluição do canal de Santos angustia os trabalhadores e habitantes da região
Recentemente, o deputado estadual Simão Pedro, do PT, visitou o Sítio Conceiçãozinha e se comprometeu a solicitar ao atual ministro dos Portos e Aeroportos, Sílvio Costa, uma audiência com os pescadores. “O presidente tem uma ligação afetiva muito forte com esse bairro, porque morou lá com a mãe, quando vieram de Pernambuco”, conta. Segundo o parlamentar, o assédio das empresas intensificou-se nos últimos tempos. “Até incentivaram a criação de outra associação de pescadores, para dividi-los. É uma população muito pobre, e há muito tráfico de drogas na comunidade”, lamenta. De fato, não é preciso caminhar muito pelas ruas para encontrar pinos de cocaína vazios descartados pelos usuários.
A assessora de comunicação da TEG, Joyce Santos Lerner, afirma ser fake news a informação de que a empresa vai fechar o acesso da comunidade ao mar. Segundo ela, a construção realizada em 2023 teve como objetivo a criação de um novo ponto de amarração para navios. A recente movimentação de operários, explica Lerner, deve-se à instalação de cercas ao redor da estrutura, pois muitos banhistas têm nadado até a pedra para saltar no mar. A assessora acrescenta que todas as casas afetadas por rachaduras foram reformadas e que a empresa “realizou vistorias antes, durante e depois da obra”. Além disso, como antecipado pelo deputado Simão Pedro, ela questionou a representatividade de Seu Newton entre os pescadores: “Há outra associação”. •
Publicado na edição n° 1353 de CartaCapital, em 19 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mar privatizado’