Em julho, a limpeza étnica em Gaza completa 21 meses. O absoluto descaso internacional, salvo declarações pontuais que servem tão somente para aliviar a consciência de quem as emite, estimula Israel a colocar em prática a destruição planejada da população e das condições de vida no enclave. Um monitoramento da iniciativa Acled (Dados sobre Localização e Eventos de Conflitos Armados) aponta que, desde 17 de março, quando Israel desrespeitou o cessar-fogo temporário acertado com o Hamas, tem havido uma escalada das agressões das tropas israelenses contra a população civil. No próprio dia 17, o exército realizou 47 bombardeios ou ataques remotos. Entre o fim de março e o início de abril, houve uma elevação considerável da destruição de propriedades palestinas, levada a cabo por empreiteiras contratadas pelas forças armadas. No fim de maio, soube-se da morte de David Libi, 19 anos, colono de um assentamento ilegal na Cisjordânia que trabalha na Libi Construção e Infraestrutura, de propriedade da família. A empresa sofreu sanções do Reino Unido por apoiar a logística de postos avançados de colonização no território. De acordo com o diário Haaretz, Libi é o terceiro empreiteiro civil israelense morto na região neste ano.
Os dados mais recentes da OCHA-OPT (Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários nos Territórios Ocupados Palestinos), referentes a junho, informam que 436 mil moradias de Gaza, ou 92% do total, estão destruídas ou danificadas. Cerca de 1 milhão de habitantes, ou seja, metade dos palestinos do território, têm necessidade de abrigo. Amjad Shawwa, coordenador de um conjunto de ONGs palestinas, afirma que “Rafah, ao sul, está totalmente ocupada e sob ações de total destruição por parte dos israelenses”. A mesma situação repete-se no norte.
Neste momento, Israel controla 82,6% do território de Gaza, áreas localizadas em zonas militares ou sob ordens de evacuação. Em 2 de abril, o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, aprovou a implementação da Linha Morag, um corredor transversal (leste–oeste) ao sul de Gaza que praticamente isolou o distrito de Rafah. A linha acopla-se ao Corredor Netzarim, bloqueio transversal ao norte. Segundo Shawwa, essas separações restringem o movimento da população local. “Temos a Avenida Rashid, a estrada da costa, onde é pouco seguro. Carros não podem transitar, apenas motos, que carregam as encomendas. Moradores usam jumentos para levar cargas. Ir a pé é muito perigoso.”
As forças israelenses fizeram dos centros de distribuição de comida uma armadilha
O plano israelense, crê Shawwa, é estabelecer o equivalente a “campos de concentração” no território. “Os israelenses controlam tudo e sufocam o povo nas áreas isoladas. É muito arriscado sair. Israel bombardeia os territórios que controla, com mortes todos os dias.” Na manhã da segunda-feira 30, um dos alvos foi a cafeteria Al-Baqa, frequentada por jornalistas e ativistas. O bombardeio deixou um saldo de 20 mortos.
O norte do enclave é a região com presença militar mais forte, ocupada e sob ordens de evacuação. Permanece na Cidade de Gaza, diz o ativista, cerca de 1 milhão de habitantes. “Todos receberam ordens de evacuação, mas se recusam a sair de seus bairros. Todos os dias há ataques nessas áreas, sem qualquer acesso às equipes médicas ou à defesa civil que possam chegar a eles. Muitas vezes há corpos sangrando ou embaixo de ruínas.”
Antony Loewenstein, jornalista independente e autor de Laboratório Palestina, entende que um dos objetivos do governo israelense, ou ao menos de seu setor mais extremista, que inclui Netanyahu, é implementar assentamentos em uma ocupação de longo prazo, especialmente no norte. “Não vejo um futuro próximo onde não haja algum tipo de controle militar israelense. A questão é se Donald Trump vai apoiar esse plano”, afirma.
Na terça-feira 1º, o presidente dos EUA disse que Tel-Aviv havia aceitado uma proposta de cessar-fogo de 60 dias. O acordo propõe a entrega pelo Hamas dos reféns israelenses restantes, vivos ou mortos, informou o blog de Barak Ravid. Essa parte do texto foi um ajuste que Steve Witkoff, enviado de Trump ao Oriente Médio, e Ron Dermer, assessor de Netanyahu, fizeram a uma versão apresentada pelo Catar. Agora, a diplomacia de Doha e representantes do Egito conversarão com o grupo armado palestino. A demanda central do Hamas é de um cessar-fogo definitivo, não garantido por Israel. Na segunda-feira 7, Netanyahu e Trump reúnem-se na Casa Branca. O republicano tem dito que pretende cobrar de forma mais efetiva a interrupção dos ataques a Gaza.

Cogumelo. Os caminhões com água e comida chegam aos poucos. O que vem em grande quantidade são as bombas – Imagem: Bashar Taleb/AFP
Para Loewenstein, o Hamas terá menos influência política no enclave após o fim da invasão. O objetivo israelense, entre outras alternativas, é entregar áreas do enclave à administração de palestinos não afiliados ao Hamas ou à Fatah. O jornalista considera um delírio, no entanto, a promessa de Tel-Aviv de derrotar militarmente o grupo. “Mesmo que Israel tenha fragmentado Gaza, há ainda, provavelmente, entre 20 mil e 40 mil combatentes. Muitos líderes foram abatidos, mas uma mensagem que a história deixa é que, do Vietnã ao Afeganistão, não se derrota uma força de guerrilha insurgente”. A fragmentação do território, complementa, visa “tornar qualquer forma de organização ou resistência, seja política, seja militar, quase impossível”.
A nova geografia do território palestino acopla-se à instalação de um bloqueio total que completa quatro meses e limita, inclusive, a entrada de água, comida e remédio. A fase mais recente, denuncia Shawwa, aprofunda a ação propositada de Israel. “A fome imposta desde o início da guerra, com a proibição da entrada de itens alimentícios, e a destruição da infraestrutura obrigam os moradores a ficar totalmente dependentes de ajuda humanitária. Com a proibição de qualquer produto, vários itens começaram a acabar e muitos estão passando fome, muitas crianças sofrem de má nutrição.” O médico Ahmed al-Farra, chefe da pediatria do Hospital Nasser, em entrevista na terça-feira 1º, afirmou que 20 bebês na UTI correm o risco de contrair meningite por conta da falta de fórmula infantil que substitui o leite materno. A OCHA-OPT registra que a população de Gaza vive atualmente sob alto risco de insegurança alimentar. Do total, 470 mil, ou um quarto dos habitantes, está em níveis catastróficos de fome. Segundo dados da Agência de Agricultura, 83% das terras de cultivo, 83% dos poços de água para agricultura e 72% da frota de pesca foram destruídos nos últimos 21 meses. Apenas 5% de terras férteis estão disponíveis à população.
Produzida a escassez, Israel, em conjunto com empresas norte-americanas, mudou o sistema de distribuição de auxílio humanitário. A implementação de centros de distribuição de alimentos coordenados pelo Fundo Humanitário de Gaza (GHF, na sigla em inglês), iniciativa registrada nos EUA, excluiu entidades internacionais ligadas a programas humanitários, como a UNRWA. Agora, o exército israelense, o GHF e a SRS, companhia de segurança privada dos Estados Unidos, coordenam as atividades.
Uma das críticas ao novo sistema é que ele limita-se a partes restritas do território. Há três centros em Rafah e um ao sul de Netzarim. “Isso empurra a população do norte para o sul, de modo a facilitar a ocupação do resto do território”, afirma Shawwa. Palestinos caminham até duas horas para chegar a esses locais. “Saem muito cedo para conseguir uma pequena quantidade de comida, que muitas vezes não é suficiente. No melhor dos cenários, são de 3 a 4 mil marmitas para cerca de 15 mil, 20 mil famintos.”
Restam apenas 5% de terras para cultivo
Os centros do GHF também se tornaram campos de extermínio. Moradores são atraídos pela promessa de comida e água e acabam alvejados. Desde a criação dos centros, foram registrados nas imediações 570 mortos e cerca de 4 mil feridos.
A maior parte dos ferimentos ocorre na parte superior do corpo, na cabeça ou no peito. O problema torna-se mais grave à medida que o sistema de saúde de Gaza, destruído, não consegue atender as vítimas. Dos 36 hospitais, 17 só funcionam de forma parcial. No caso dos centros de saúde, são 65 entre 163. Além disso, perto de 1,6 mil trabalhadores da área da saúde foram assassinados.
Uma reportagem do Haaretz reuniu depoimentos de soldados israelenses instruídos a atirar em civis que se aproximavam dos centros da GHF. Um dos militares descreveu os GHFs como “campos da morte”. “Onde eu estava alocado, entre um e cinco palestinos eram mortos por dia”, confessou um dos entrevistados.
Resta aos palestinos, diz Shawwa, o esforço de mobilizar a opinião pública internacional. “As declarações recentes de alguns Estados são bem-vindas, mas não precisamos de declarações honestas, e sim de ações que pressionem Israel a parar essa guerra e a abrir todas as passagens, e fazer com que o governo israelense seja responsabilizado por seus crimes.” O ativista desabafa: “É muito difícil sobreviver nessas condições. Fazemos o melhor que podemos para nos manter vivos. Não tenho palavras de como a situação está se deteriorando de forma rápida. Israel faz o máximo para tornar Gaza um lugar inabitável, e assim nos deportar”. •
Publicado na edição n° 1369 de CartaCapital, em 09 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Fome, arma de guerra’