Só um fato inesperado, o banco J.P. Morgan divulgou um documento no qual alerta sobre a estabilidade cambial na Argentina, interrompeu a maior incógnita política do país. Em um ano de eleições legislativas com datas diferentes, o enigma é se o presidente de extrema-direita, Javier Milei, conseguirá manter ou não seu atual nível de apoio de ao menos 40%, apesar da queda do consumo, da redução da renda dos trabalhadores e dos pobres e do aumento progressivo do desemprego. “Milei mantém o apoio popular, ainda que diminuído, como um efeito refratário em comparação com os governos desastrosos de Mauricio Macri–Gabriela Michetti e Alberto Fernández–Cristina Fernández de Kirchner, que quase ninguém aprova”, afirma o analista internacional Marcelo Brignoni. “Se a alternativa a Milei for Cristina ou Macri, Milei continuará por um bom tempo. E não porque a popularidade do presidente esteja crescendo, mas por outro motivo: todos se lembram dos governos fracassados que ocuparam a Presidência entre 2015 e 2023.”
“Milei deve ser analisado como causa, mas ao mesmo tempo como sintoma”, opina o consultor Rafael Prieto. “Para tentar entender as razões pelas quais ele mantém forte apoio entre amplos setores da população, apesar de suas políticas de austeridade, da queda de salários e aposentadorias e do severo impacto de suas políticas nos setores produtivos, especialmente os industriais, é necessário analisar mais fundo seu papel como representante simbólico da antipolítica, da anticasta.” Para Prieto, esse espírito antipolítico “continua a mobilizar a opinião de setores da sociedade, alimentado por campanhas que buscam reforçar a associação da política com a corrupção, como se ela fosse a causa original de todos os problemas que afetam os argentinos”.
Nesse sentido, Milei apresenta-se como o “justiceiro” que vem reparar essa injustiça. O “libertário”, prossegue Prieto, “aplica receitas que causam ainda mais dor, ao mesmo tempo que promete um futuro diferente”. O consultor analisa que “essa fórmula ainda funciona: os eleitores reconhecem que as coisas pioraram desde que Milei assumiu o cargo, mas culpam a ‘casta’ por essa situação. E a queda da inflação, apesar de ocorrer num contexto de forte redução do poder aquisitivo, contribui temporariamente para atenuar a incerteza inerente aos processos inflacionários”.
Segundo Shila Vilker, da consultoria Trespuntozero, “Milei, com seus xingamentos e suas encenações, continua a capitalizar a antipolítica. Consegue isso por meio de insultos, zombarias e repulsa como formas estéticas de representar sua diferença de outros políticos. E constrói inimigos”.
O sociólogo Hugo Haime afirma: “A Argentina viveu muitas frustrações, especialmente com os governos de Macri e Fernández. A sociedade exigia mudanças, que incluem a necessidade de redefinir o papel do Estado em termos de assistência social e pôr fim ao processo inflacionário”. “Milei”, diz o sociólogo, “mantém a capacidade de inspirar expectativas de que as coisas vão melhorar dentro de um ano, algo em que 40% da população acredita”. E acrescenta: “Esse apoio se deve ao fato de o perceberem como o homem da estabilização e aquele que está acabando com a velha casta política”. Nas pesquisas de Haime, 70% dos entrevistados afirmam ter problemas econômicos. “Os que mais acreditam que pode haver um processo de melhora econômica são os da classe média baixa, especialmente os autônomos.” O objetivo dos empobrecidos, especialmente nesse segmento, é tornar-se parte da classe média.
O “libertário” mantém apoio na casa dos 40%, apesar da piora do padrão de vida da maioria
Outro consultor, Gustavo Córdoba, tem uma perspectiva diferente. “Mais do que um forte apoio a Milei, há uma sociedade polarizada que não quer ceder e reconhecer a má gestão econômica e política. E a questão da inflação não está mais no topo de suas preocupações.” Córdoba destaca que em nenhuma das eleições provinciais realizadas até agora em 2025, o La Libertad Avanza, partido do presidente, venceu por ampla margem. “Teve votações discretas, e em outras chegou perto dos 30% que obteve no primeiro turno presidencial de 2023.” Nas eleições na província de Santa Fé, o peronismo uniu-se e conquistou a cidade mais importante, Rosário, uma das três mais populosas da Argentina, juntamente com Buenos Aires e Córdoba. Nas eleições provinciais em Formosa, no nordeste, o peronista Gildo Insfrán venceu com mais de 70%. Enquanto isso, Córdoba observa que “o círculo vermelho formado pelos empresários mais poderosos agradece a Milei por ter sido a muralha contra o kirchnerismo, mas não está eufórico quanto aos resultados econômicos”.
O ex-senador e embaixador na França Eric Calcagno acredita que parte do apoio a Milei deve-se ao fato de ele ter conseguido transformar “justiça em vingança e gerar identidade com sua pregação contra a igualdade, e isso só pode ser expressado por meio da violência, com insultos em vez de argumentos, num processo mais próximo do novo paganismo do que de um debate político”.
Na semana passada, Milei retuitou uma publicação no X que usava Inteligência Artificial para fabricar uma cena de incesto inexistente que envolve a jornalista Julia Mengolini e, para criticar o governador de Buenos Aires, Axel Kicillof, chamou-o de “eunuco”. Essa violência ocorre, acredita Calcagno, “para demonstrar poder, e o mesmo objetivo é comemorar a condenação de Cristina Kirchner, justamente porque o poder condenou alguém inocente, e não uma culpada”.
O líder político de oposição Pablo Vera afirmou que “a raiva dos argentinos em relação ao peronismo ainda persiste, e não há construção de uma alternativa viável e crível”. Brignoni estima que “somente uma profunda renovação e uma verdadeira autocrítica” do macrismo e do peronismo permitirão que a oposição volte a ser uma “alternativa a Milei em qualquer uma de suas variantes”. O analista ressalta: “Até que isso aconteça, não há possibilidade de o eleitorado votar novamente naquilo que já decidiu abandonar, as lideranças, atualmente muito minoritárias, de Macri e Cristina”. •
*Martín Granovsky é colunista do jornal argentino Página/12, diretor do site “Y ahora qué” e palestrante do programa de televisão QR.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1369 de CartaCapital, em 09 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Decifra-me ou te devoro’