
Em uma matéria publicada no O Globo, a enfermeira Laura Rohe, de 51 anos, de Omaha, Nebraska, relembra como as terapias com plasma sanguíneo impactaram sua vida. Quando criança, ela enfrentava doenças constantes, como pneumonia e infecções nos seios da face.
“Eu era a criança doente descansando no sofá enquanto meus irmãos brincavam”, lembra. Aos 14 anos, Laura foi diagnosticada com imunodeficiência comum variável, uma condição em que seu corpo não produzia anticorpos suficientes para combater infecções. Esse diagnóstico a colocou em risco de problemas graves no fígado, pulmões e até câncer.
Mas a solução chegou por meio de infusões mensais de imunoglobulina, um medicamento derivado do plasma sanguíneo humano. “Foi como acionar um interruptor”, conta Laura, que a partir daí passou a levar uma vida normal.
Seu tratamento é parte de uma revolução médica que utiliza plasma para tratar milhões de pessoas no mundo todo, especialmente para condições como hemofilia, distúrbios imunológicos e sepse. Essas terapias, que incluem anticorpos e proteínas do plasma, são tão eficazes que estão na Lista de Medicamentos Essenciais da Organização Mundial da Saúde (OMS).
A evolução dos tratamentos com plasma é notável: enquanto a expectativa de vida de pacientes com hemofilia era de apenas 19 anos em 1955, hoje esses pacientes têm uma expectativa de vida quase normal.
A taxa de sobrevivência para pacientes com a condição de Laura, que era de apenas 30% em 1979, também melhorou, chegando a níveis semelhantes aos de outras pessoas. Com esses avanços, a demanda por plasma aumentou significativamente, impulsionando um mercado que deve atingir US$ 46 bilhões até 2027, conforme estimativas da BCC Research.
No entanto, essa crescente demanda trouxe à tona um dilema ético e social: a única fonte de plasma humano disponível para a produção desses medicamentos são os doadores voluntários. Nos Estados Unidos, onde a venda de plasma é permitida, cerca de 70% do suprimento global vem de três milhões de pessoas que vendem seu plasma.
A maioria desses doadores vive em condições financeiras precárias, o que levanta questões sobre a exploração econômica dessa prática. “As pessoas fazem isso para atender necessidades básicas”, afirma Emily Gallagher, professora de Finanças da Universidade do Colorado, que estuda o impacto social e econômico da venda de plasma.

O mercado de plasma nos EUA tem crescido exponencialmente. O número de centros de coleta triplicou entre 2011 e 2024, chegando a mais de 1.200 unidades, com grandes empresas multinacionais dominando a operação desses locais.
O lucro dessas empresas é expressivo: a australiana CSL Behring, por exemplo, registrou US$ 5,6 bilhões em lucro no ano fiscal encerrado em junho. A Takeda Pharmaceuticals, gigante japonesa, obteve quase 20% de sua receita de medicamentos derivados de plasma, somando um lucro de US$ 2,2 bilhões.
A prática de pagar os doadores gerou controvérsias, especialmente quando se trata de populações de bairros pobres e com maior concentração de grupos étnicos minoritários. Em muitas dessas comunidades, a doação de plasma é uma das poucas formas de gerar renda.
Em alguns locais, como no bairro de Van Nuys, Califórnia, os centros de coleta estão próximos a casas de penhores e lojas de empréstimos de curto prazo, evidenciando a vulnerabilidade financeira dos doadores. O pagamento por plasma, que pode variar entre US$ 50 e US$ 100 por doação, tem sido fundamental para muitas famílias, que utilizam o dinheiro para despesas básicas como aluguel e alimentação.
A questão da saúde dos doadores também é um ponto crítico. A Organização Mundial da Saúde expressa preocupação com os riscos da doação frequente de plasma, que pode causar fadiga, além de reduzir as proteínas essenciais, como imunoglobulina, tornando os doadores mais vulneráveis a infecções.
A Food and Drug Administration (FDA) dos EUA exige que os doadores assinem um termo de consentimento informado, mas não aborda a escassez de pesquisas sobre os efeitos a longo prazo da doação repetida. A indústria do plasma afirma que os riscos para os doadores são minimizados por meio de rígidos processos de triagem e testagem, garantindo que o plasma esteja livre de infecções.
No entanto, a crescente demanda e o aumento da dependência do plasma como recurso terapêutico levantam preocupações sobre a exploração de populações vulneráveis. A necessidade de plasma nos EUA e em outros países continua a crescer, mas as implicações para a saúde dos doadores e os impactos sociais dessa prática continuam a ser debatidos.
Em países como a Dinamarca, que não permite o pagamento por plasma, a doação voluntária tem sido mais bem-sucedida. Com o apoio da Cruz Vermelha e incentivos governamentais, a Dinamarca conseguiu aumentar suas doações voluntárias, superando 80% de sua necessidade de plasma. Isso levanta uma questão importante: será que é possível obter plasma suficiente sem recorrer ao pagamento, e ao mesmo tempo garantir que os doadores sejam tratados de maneira justa e segura?