Democracia está em risco nos EUA
Por Maria João Silva*
Em pleno período eleitoral, que vai definir nos Estados Unidos o modelo de governabilidade para os próximos quatro anos, diversos acontecimentos chamam a atenção das pessoas que se preocupam com a estabilidade e o fortalecimento das democracias no mundo.
Por um lado, a candidatura de Joe Biden, do Partido Democrata, vem sofrendo abalos recentes, sob a alegação de que o candidato sofre problemas cognitivos, dada sua idade avançada.
Por outro, a tentativa de Donald Trump, do Partido Republicano, de chegar ao poder representa riscos às instituições democráticas, pelo exemplo que ele deixou quando governou, de 2017 a 2020.
Uma pergunta se apresenta: a democracia estadunidense está em perigo ou já vive uma crise sem precedentes?
É necessário refletir sobre esse contexto, pois, a menos de quatro meses das eleições presidenciais de novembro, incertezas rondam os dois maiores partidos políticos do país.
Para acrescentar um ingrediente negativo, Donald Trump foi alvejado num atentado, durante comício realizado na Pensilvânia, no sábado, 13 de julho.
O tiro atingiu o candidato republicano de raspão, mas, se o tivesse atingido fatalmente, os republicanos iriam reagir, provavelmente, tratando Trump como um herói, colocando-se como vítimas e culpando os oponentes do Partido Democrata, por aparentemente terem planejado ou, pelo menos, contribuído para o acirramento dos ânimos, que teria propiciado o atentado.
Para Donald Trump e seus eleitores, os Democratas são inimigos.
Esse segmento mais radicalizado do eleitorado republicano não compartilha a visão da política democrática, de que estão em disputa projetos políticos diferentes, o que exige respeito, mas reforça um sentimento de vingança e ódio. Além disso, tenta desacreditar as instituições e burlar normas.
A invasão do Capitólio, no dia 6 de janeiro de 2021, foi uma prova disso. Incentivados por Trump, foram convocados a se reunir em Washington, para questionarem o resultado eleitoral que deu vitória a Biden.
Baseados na falsa alegação – nunca comprovada – de que houve fraude na votação, queriam forçar o então vice-presidente Mike Pence a não validar a contagem dos votos.
Além de representar um atentado à democracia, a ação resultou em cinco mortes, prisões e a depredação do interior do Congresso.
Esses episódios mobilizaram a opinião pública nos EUA e em outros países.
Apesar de nas últimas décadas os governos não estarem contemplando, devidamente, as demandas da população, com políticas sociais robustas, voltadas à saúde, educação e moradia, a democracia estadunidense é uma das mais antigas do mundo e serve, com frequência, como um modelo a ser seguido.
Mas o sistema político parece não estar dando conta dos desafios e há a tendência ao crescimento da extrema-direita no país.
Recentemente, o processo das eleições parlamentares na França mostrou fragilidade. A extrema-direita quase chegou ao poder, não fosse a atuação de lideranças políticas experientes e o comprometimento do eleitorado democrático, que fizeram um acordo para que os franceses comparecessem em massa e votassem expressivamente nos candidatos de esquerda e do centro liberal.
O que está havendo com a democracia?
Para compreendermos o que está acontecendo, é importante nos remetermos ao tema da democracia.
Muitos estudos e pesquisas realizados em diferentes países têm se preocupado em examinar a qualidade das democracias atuais e a performance de governos democráticos.
Nos anos 80 e 90 do século passado, buscou-se analisar processos de transição democrática na América Latina, África, Leste Europeu e Ásia.
Mostrou-se que o número de países democráticos cresceu acentuadamente no período. Em 1985, havia 42 países democráticos, que abrigavam 20% da população mundial.
Já em 2015, esse número cresceu para 103, responsáveis por 56% da população mundial. Essas estatísticas foram produzidas pelo Polity Project e analisadas pelos pesquisadores.
O Projeto Polity, atualmente na versão Polity IV, é um medidor de democracia, desenvolvido pela corporação sem fins lucrativos Center for Systemic Peace (CSP), fundada em 1997, com sede em Viena.
O Polity gera relatórios anuais da situação dos principais estados-nações do mundo (com mais de 500.000 habitantes), que são publicados em seu site.
Dos anos 2000 em diante, passou-se a estudar a questão da qualidade das democracias e a performance dos governos democráticos.
Em função do fracasso da democratização em países que promoveram a Primavera Árabe, à exceção da Tunísia, Leste Europeu e Ásia, houve certo consenso em torno da ideia de uma “recessão democrática”.
Nos últimos anos, a preocupação passou a ser a crise das democracias consolidadas.
Um livro instigante que lança luz sobre a crise da democracia nos EUA é “Como as democracias morrem”, dos professores de Ciência Política de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.
Eles adotam como ponto central de análise a crise no sistema político estadunidense, sobretudo a partir da ascensão de Donald Trump, eleito no final de 2016, e que assumiu a presidência em 2017.
Os pesquisadores indicam fatores que contribuíram para essa crise, como mudanças nas regras de escolha dos candidatos a presidente, o que facilitou a entrada de outsiders como Trump; a adoção de regras informais em contraponto às regras escritas, que sobrevivem mais tempo; e uma menor atuação de líderes políticos e dos partidos para evitar que demagogos extremistas acumulassem poder e participassem das chapas eleitorais.
Sobre isso, Levitsky e Ziblatt afirmam: “Sem normas robustas, os freios e contrapesos constitucionais não servem como os bastiões da democracia que nós imaginamos que eles sejam”.
E destacam: “O paradoxo trágico da via eleitoral para o autoritarismo é que os assassinos da democracia usam as próprias instituições da democracia – gradual, sutil e mesmo legalmente – para matá-la”.
Na visão desses cientistas políticos, a surpreendente vitória de Trump, em 2016, foi viabilizada não apenas pela insatisfação dos eleitores com a situação do país, mas também pelo fracasso do Partido Republicano em “impedir que um demagogo extremista em suas próprias fileiras conquistasse a indicação”.
O que podemos esperar da campanha de Trump nos próximos meses? Se ele vencer o pleito, o que será da democracia já em crise nos EUA?
Na semana que começou em 15 de julho, a Convenção do Partido Republicano em Wisconsin oficializou Donald Trump como candidato e o senador James David Vance como seu vice.
Vance tem se apresentado como um “conservador outsider, fuzileiro, empresário e autor”. Ao mesmo tempo, o programa de governo elaborado por Trump, que foi submetido à Convenção, baseia-se na ideia de que os Estados Unidos estão “em declínio” e o estilo de vida dos norte-americanos “sob ameaça”.
Sugere, entre outras medidas, o controle das fronteiras, a deportação em massa e o término da construção do muro na fronteira com o México como soluções para coibir o fluxo de imigrantes. Um roteiro típico da extrema-direita.
*Maria João Silva é jornalista e doutora em Ciências Sociais.
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.