no Project Syndicate

O ataque israelense em Doha destruiu a credibilidade americana

por Daoud Kuttab

Após décadas de impunidade por suas violações do direito e das normas internacionais, Israel não hesita mais em fazer o que bem entende. Além das vítimas individuais do ataque aos negociadores do Hamas no Catar, a principal vítima da escalada israelense é a credibilidade dos EUA.

RAMALLAH – Não está claro se, e em que medida, os Estados Unidos sabiam do ataque aéreo israelense contra negociadores do Hamas em Doha, capital do Catar. Mas não há mais dúvidas de que Israel assumiu carta branca. Após décadas de impunidade por suas violações do direito e das normas internacionais, o país não hesita mais em fazer o que bem entende. Além das vítimas individuais, a principal vítima da escalada israelense é a credibilidade dos EUA.

Israel – beneficiário de bilhões de dólares em ajuda anual dos EUA – comemorou abertamente o ataque. Até mesmo o arquirrival do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, o líder da oposição Yair Lapid, parabenizou publicamente a “Força Aérea, as Forças de Defesa de Israel (IDF), o Shin Bet e todas as forças de segurança por uma operação excepcional para frustrar nossos inimigos”.

Enquanto Israel vaga livremente pela região, bombardeando outros países à vontade, a influência dos Estados Unidos diminuiu. Desde a invasão do Iraque, sua credibilidade nunca esteve tão baixa. O elemento mais preocupante do ataque de Doha era seu alvo. O objetivo de Israel era assassinar os negociadores que se reuniam para discutir a proposta de cessar-fogo dos Estados Unidos. Ao fazer isso, não apenas sabotou as negociações de cessar-fogo, mas também manchou a palavra dos Estados Unidos.

Infelizmente, há algum precedente para o ataque israelense. Em Jerusalém, há 77 anos, um mediador de paz das Nações Unidas, o diplomata sueco Folke Bernadotte, foi assassinado por extremistas judeus que agiam sob a autoridade de Yitzhak Shamir, entre outros. Shamir mais tarde se tornaria primeiro-ministro de Israel, nomeando Netanyahu como seu porta-voz. Mesmo que a violência contra enviados de paz não seja nova, ela é sempre corrosiva.

Enquanto isso, os palestinos têm assistido aos EUA repetidamente protegerem Israel de responsabilidades. Sucessivos governos americanos, tanto o de Joe Biden quanto o de Donald Trump, têm encoberto os bombardeios israelenses contra hospitais e os ataques a jornalistas e trabalhadores humanitários em Gaza. Eles ignoraram a violação de cessar-fogo por Israel e o cerco ao enclave. Chegaram a punir palestinos fechando sua missão diplomática em Washington e negando vistos a autoridades palestinas convidadas para a Assembleia Geral da ONU em Nova York.

A proposta de cessar-fogo dos EUA, agora frustrada, era tendenciosa a favor de Israel. Previa a libertação de todos os reféns israelenses restantes no primeiro dia, em troca da garantia dos EUA de que pressionariam Israel a se retirar de Gaza e encerrar a guerra. Claramente, Israel tinha outra ideia em mente. Ao matar negociadores, você destrói a única via disponível para trazer seu próprio povo de volta em segurança.

Além disso, as políticas israelenses de assassinato nunca conseguiram pôr fim à resistência. Israel matou um líder do Hamas após o outro, apenas para que novas figuras – geralmente ainda mais radicais – tomassem seus lugares. Foi exatamente isso que aconteceu após o assassinato de Ismail Haniyeh, chefe do Birô Político do Hamas, em 2024, em violação à soberania de outro Estado-membro da ONU, o Irã.

A credibilidade dos Estados Unidos em oferecer propostas de cessar-fogo baseava-se unicamente na crença de que poderiam e iriam cumprir o que fosse acordado. Mas sua falta de controle sobre seu aliado agora foi exposta. Ao mirar os negociadores do Hamas que avaliavam a validade das garantias americanas, Israel fechou a porta para essa proposta e qualquer acordo futuro. Provavelmente era exatamente isso que Netanyahu pretendia. Procurado internacionalmente por crimes de guerra e indiciado em Israel por corrupção, ele concluiu que encerrar a guerra também encerraria sua carreira.

A confiança, uma vez quebrada, é difícil de restaurar. O Catar, lar da maior base militar americana na região, já ameaçou suspender seu papel de mediador. Mas se os EUA e seus aliados regionais não puderem mais atuar como mediadores, ninguém poderá. Não há outra potência com a influência necessária para chegar a um acordo ao qual Netanyahu se oponha.

Dada a sua própria relação tensa com a verdade, Trump pode acreditar que a credibilidade não importa. Mas, na pacificação do Oriente Médio, ela é tudo. Sem ela, as negociações fracassarão antes mesmo de começarem. O governo Trump está aprendendo isso da maneira mais difícil, em tempo real. A influência americana está diminuindo rapidamente não apenas em Gaza, mas globalmente, como demonstrado pelo vergonhoso fracasso em encerrar a guerra na Ucrânia no “primeiro dia”.

Como o ex-presidente americano Ronald Reagan entendeu, fazer um acordo com um adversário exige “confiar, mas verificar”. Com Trump e Netanyahu, não pode haver confiança. O único caminho a seguir é por meio de ações concretas: uma retirada total e verificada das tropas israelenses de Gaza em troca da libertação de reféns israelenses e prisioneiros palestinos (muitos dos quais estão presos indefinidamente sem acusações). Qualquer coisa menos que isso será descartada como palavras vazias.

Israel e seu patrono americano se meteram em um buraco profundo. Sair dele exigirá mais do que retórica. Exigirá ações verificáveis, porque neste conflito, a confiança nos Estados Unidos desapareceu.

Daoud Kuttab, ex-professor de jornalismo na Universidade de Princeton, é autor de State of Palestine NOW: Practical and Logical Arguments for the Best Way to Bring Peace to the Middle East.

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Last Update: 12/09/2025