O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, fez duas exigências à Organização do Tratado do Atlântico Norte. A primeira era explícita: que cada integrante da Otan elevasse os próprios gastos militares com defesa a 5% do PIB, o equivalente a quase um salto triplo para países que tinham como meta, até então, investir no máximo 2%. A segunda, mais discreta, era no sentido de baixar a “bola” do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, na cúpula encerrada na quarta-feira 25, em Haia, na Holanda.

A Otan entregou tudo o que Trump queria e um pouco mais. Além de incluir na declaração final o compromisso de incremento orçamentário e de omitir menções à Ucrânia, o secretário-geral da aliança, o holandês Mark Rutte, ainda chamou o presidente norte-americano de “papai” dos europeus. “Às vezes, o papai precisa usar palavras fortes”, disse Rutte, ao lado de Trump, numa entrevista coletiva durante o encontro. O secretário-geral da organização referia-se ao fato de o republicano ter afirmado, na véspera, que iranianos e israelenses don’t know what the fuck they’re doing – algo como “não têm a porra da ideia do que estão fazendo” –, no contexto da ruptura de um cessar-fogo que ele mesmo havia proclamado entre as partes, pouco antes.

Trump adorou ser chamado de papai. A Casa Branca usou a expressão em vídeos institucionais sobre a presença do magnata na cúpula da Otan, e o próprio presidente dos EUA repercutiu a declaração de Rutte: “Ele gosta de mim. Ele realmente gosta de mim. Ele disse isso de forma muito afetuosa. ‘Papai, você é meu papai”’, no que deve ter se constituído em um dos capítulos menos nobres e mais embaraçosos das relações recentes entre uma Europa que busca certo grau de independência, enquanto deixa patente a subalternidade em relação a Washington.

Rutte, mais tarde, voltou ao caso, para dizer que não considerava Trump um “papai” da Europa, mas que, ao fazer essa analogia, tinha buscado se referir de forma crítica à postura de alguns chefes de Estado e de governo que estão sempre a perguntar se os EUA ainda continuam firmes na Otan, como crianças que precisam se certificar de que o progenitor não abandonou o lar. O remendo veio tarde, pois o próprio Trump havia usado o termo como confete e, além disso, Rutte acabou expondo o comportamento frágil e infantil dos 32 integrantes da aliança, cientes de que, sem o apoio financeiro e militar da Casa Branca, não podem muito contra a Rússia.

O espectro de Vladimir Putin, aliás, é justamente o motivo de a Europa ter prometido elevar os gastos militares para o equivalente a 5% do próprio PIB até 2035. Trump insistia nesse compromisso desde 2016, quando participou de sua primeira corrida eleitoral à Casa Branca, mas só foi atendido agora, depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia, num movimento militar percebido pela Europa como um ensaio para avanços ainda mais agressivos contra o continente.

Com ou sem medo dos russos, era difícil para os países europeus cumprirem com o compromisso atual de investir ao menos 2% do próprio PIB em defesa. Oito dos 34 integrantes nem sequer chegavam nesse patamar mínimo, o que, do ponto de vista da Casa Branca, acabava jogando sobre os ombros dos EUA o ônus financeiro de manter a organização.

A partir de agora, os líderes desses países terão de se virar para justificar a seus cidadãos um empenho orçamentário em defesa redobrado, num momento em que a economia europeia patina, justamente por causa da guerra na Ucrânia, que provocou aumento do custo da energia, num contexto de alta dos juros e da inflação.

A subserviência de Rutte, secretário-geral da aliança, marcou a reunião em Haia

Dos 5% empenhados nos próximos dez anos, 1,5% poderá ser investido em obras de infraestrutura civis conversíveis e utilizáveis em caso de mobilização militar, o que inclui ferrovias, portos, pontes e estradas, além de cibersegurança e elementos de um programa de defesa civil mais robusto. Apesar desse atenuante, nem todos os associados estão de acordo. O primeiro-ministro espanhol, Pedro ­Sanchez, disse que seu país não pretende ir além de 2,1% do próprio PIB em gastos militares. Os governos da Bélgica e da Eslováquia também consideraram impossível alcançar a nova meta. Para não desagradar ao “papai”, Rutte recorreu a um contorcionismo diplomático, dizendo que “os aliados” da Otan se comprometeram com maiores gastos, não “todos os aliados”.

Subir as despesas é parte de um problema que tem ainda duas outras pernas: a de como gastar e a de com quem gastar. A Europa tem dificuldade em aumentar o recrutamento militar voluntário. De acordo com pesquisa feita em junho pelo Instituto Forsa, dois terços dos alemães acreditam que a Europa deveria desenvolver uma capacidade nuclear militar que prescindisse dos EUA, mas só 17% dos alemães se dizem motivados a se alistar nas Forças Armadas para defender o país em caso de guerra.

O governo do chanceler Friedrich Merz investe em campanhas nas redes sociais e na montagem de modernos stands públicos das Bundeswehr – as Forças Armadas alemãs – para cumprir a meta de transformar os atuais 182 mil militares em 203 mil em seis anos. O recrutamento teve alta de 18,5% entre 2023 e 2024, mas as forças perdem todo ano 20 mil militares, enviados à reserva, enquanto um quarto dos novos recrutas não passa nas etapas de seleção. Problemas semelhantes são enfrentados por outras potências militares europeias, como a França e o Reino Unido, onde a população envelhece e a maioria dos jovens, muitos dos quais imigrantes de segunda ou terceira geração, não veem atrativo em pegar em armas, no lugar de construir uma carreira civil.

Além do aumento do investimento em defesa e da ampliação no número de recrutas, a Europa terá de lidar ainda com a qualidade desse movimento, no sentido de saber direcionar esforços para as armas, munições, táticas e estratégias que farão sentido daqui a dez anos, em face da ameaça projetada. “Esse dinheiro deve ser coordenado e bem gasto, senão só resultará em aumento de custos e de inflação”, afirmou o senador democrata Christopher Coons, do Comitê de Relações Exteriores do Senado dos EUA, presente na reunião em Haia.

Em meio ao desvario subserviente montado por Rutte, pode-se ouvir a voz do presidente da França, Emmanuel Macron, lembrando que o “papai” Trump que pede mais gastos militares da Europa é o mesmo que mina a economia dos seus aliados com uma guerra tarifária sem sentido. •

Publicado na edição n° 1369 de CartaCapital, em 09 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘No colo do papai’

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Last Update: 03/07/2025