
Por Reynaldo Aragon
Enquanto as big techs ameaçam sufocar o jornalismo independente, o STF decide se o Brasil vai responsabilizar quem lucra com a mentira. O que está em jogo no julgamento do Artigo 19 não é só a liberdade de expressão — é a sobrevivência da informação pública fora do controle algorítmico.
O cerco e a chantagem
O Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet, e as grandes plataformas reagiram com a velha tática da chantagem. Em entrevista recente, o presidente do Google Brasil, Fábio Coelho, afirmou que, caso o STF responsabilize as plataformas pelo conteúdo publicado por seus usuários, haverá um “risco real” para a liberdade de expressão, incluindo o jornalismo investigativo e o humor. O que está por trás dessa declaração não é preocupação com a democracia — é medo de perder o controle absoluto sobre os fluxos de informação no Brasil.

Por trás do discurso da liberdade, o que se esconde é um modelo de negócios baseado na impunidade informacional: as plataformas lucram com a desinformação, amplificam narrativas de ódio e sabotam o debate público, enquanto se isentam de qualquer responsabilidade legal. Agora, quando o Estado tenta impor um mínimo de ordem nesse caos, ameaçam retaliar justamente quem mais depende delas para existir — o jornalismo independente.
A falência da checagem e a lógica invertida da desinformação
A checagem de fatos, por mais bem-intencionada que seja, não tem sido capaz de conter o avanço da desinformação. Uma mentira cuidadosamente moldada para gerar revolta ou pânico se espalha em minutos — impulsionada por algoritmos que premiam o engajamento e ignoram a veracidade. Já a checagem, quando chega, alcança uma fração ínfima do público original e, muitas vezes, apenas reforça a crença dos já convencidos da mentira.
No universo bolsonarista, por exemplo, se a checagem parte de um veículo considerado “inimigo”, ela não esclarece — ela confirma. A lógica é invertida: quando a mídia desmente, a base radical entende que estava certa. A verdade passa a ser medida não pelos fatos, mas pela identidade de quem fala. E é justamente essa dinâmica que torna urgente a responsabilização das plataformas. Não se trata mais de corrigir depois — trata-se de impedir que a mentira se alastre desde o início.
A máquina bolsonarista está em operação — com apoio das plataformas
Não se trata de teoria conspiratória, mas de observação empírica: a extrema-direita brasileira opera dentro das plataformas com liberdade e apoio estrutural. Os algoritmos favorecem conteúdos agressivos, sensacionalistas e falsos — justamente o tipo de material que sustenta a guerra cultural bolsonarista. A militância digital conta com proteção institucional e tecnológica: não são removidos, não são punidos, são impulsionados.
Enquanto isso, veículos progressistas, organizações da sociedade civil e perfis de jornalistas independentes sofrem com desmonetização, shadowban e invisibilidade. O jogo é assimétrico, e quem controla o algoritmo define os termos do debate público. A ideia de que as plataformas são neutras é um mito conveniente. Elas têm lado — e, hoje, esse lado está estrategicamente alinhado ao projeto autoritário da extrema-direita para 2026.
A chantagem contra o jornalismo independente
A declaração do presidente do Google é, na prática, uma ameaça: se o STF decidir pela responsabilização das plataformas, os pequenos veículos de imprensa — especialmente os independentes e progressistas — pagarão o preço. Essa narrativa é perversa. O verdadeiro risco ao jornalismo não vem do artigo 19, mas do poder concentrado nas mãos de empresas que controlam a distribuição de informação e podem cortar, a qualquer momento, o oxigênio de quem não se submete.
Hoje, o que mais remove ou invisibiliza conteúdos jornalísticos são as próprias plataformas, sem qualquer transparência, direito de defesa ou critério público. O que está em jogo aqui não é a liberdade de expressão — é a liberdade de chantagem. E o recado das big techs é claro: ou vocês se calam, ou nós calamos vocês. Proteger o jornalismo independente significa enfrentar esse poder, e não se curvar a ele.
Soluções para proteger o jornalismo independente
É possível — e necessário — responsabilizar as plataformas sem sacrificar o jornalismo independente. Mas isso exige coragem política e criatividade institucional. O primeiro passo é reconhecer que o problema não está no artigo 19, mas na dependência total das plataformas para distribuição, visibilidade e receita.
Uma das saídas é a criação de um cadastro nacional de veículos jornalísticos independentes, reconhecidos com base em critérios públicos, como existência editorial comprovada, produção autoral e compromisso com princípios éticos do jornalismo. Os conteúdos desses veículos seriam protegidos de remoções automáticas, e as plataformas, caso entendessem haver crime ou dano, teriam o direito de recorrer judicialmente — responsabilizando o autor, e não removendo o conteúdo por decisão unilateral e preventiva.
Além disso, propõe-se a criação de um fundo público de sustentabilidade para veículos independentes, com critérios transparentes e submetidos a conselhos autônomos, como já ocorre em democracias maduras. Deve-se também exigir transparência algorítmica, com obrigações de garantir visibilidade mínima a veículos reconhecidos — evitando que algoritmos silenciem vozes críticas por critérios comerciais ou ideológicos.
Por fim, o Estado deve fomentar plataformas cooperativas nacionais e garantir linhas de crédito, incentivos fiscais e parcerias com universidades para inovação, formação e autonomia técnica. A resposta à chantagem não é se calar — é criar garantias institucionais que assegurem a pluralidade e o direito à informação de forma soberana.
O artigo 19 não é o problema — é parte da solução
A responsabilização das plataformas não ameaça a liberdade de expressão — ameaça o modelo de negócio da desinformação. O artigo 19 do Marco Civil da Internet é uma ferramenta indispensável para frear a lógica perversa onde a mentira viraliza e a verdade agoniza. Proteger o jornalismo independente exige muito mais do que temer retaliações das big techs — exige enfrentá-las com coragem política e compromisso democrático.

Não se trata de censura. Trata-se de estabelecer limites claros para empresas que operam como infraestruturas do debate público, mas sem qualquer responsabilidade sobre os efeitos do que espalham. O STF tem a chance de tomar uma decisão histórica. Que ela não seja pautada pelo medo, mas pela verdade dos fatos: ou enfrentamos o poder das plataformas, ou entregamos de vez a democracia ao controle dos algoritmos.