O texto Um novo ciclo da esquerda brasileira?, de autoria de Valério Arcary, publicado no sítio Esquerda Online, é mais um tijolo no “novo ciclo” de Arcary, que insiste na tese de que o mundo mudou. É óbvio que o mundo sempre muda, mas o que está por trás dessa constatação é uma crítica à esquerda, que teria que mudar para acompanhar as mudanças do mundo. Está, portanto, ultrapassada, precisa se atualizar, ou, como diz: se “reorganizar”.
Além de ultrapassada, para Arcary, a esquerda tem que deixar de lado a luta de classes e centrar fogo no seu inimigo atual: o fascismo.
O fascismo, como não pode existir de maneira abstrata, acaba encarnando dentro de certas personagens. No Brasil, tomou o corpo de Jair Bolsonaro; e, mundialmente, vive na pessoa de Donald Trump, presidente dos Estados Unidos.
Arcary divide seu texto em dez trechos, mas não examinaremos todos.
No primeiro, escreve que “a reorganização da esquerda brasileira é um processo que já se iniciou, mas se desenvolve muito lentamente. Será que estamos no alvorecer de um ciclo para além dos limites do lulismo? Há muitas variáveis indefinidas. As duas mais importantes são indissociáveis, e nos remetem ao centro do enigma: se a esquerda será capaz de derrotar a extrema-direita e, se nesse processo que vai passar pelas eleições de 2026, assistiremos a uma elevação da disposição de luta dos trabalhadores e da juventude. Estas são as duas questões centrais. O que a história nos ensina é que não há como abrir um ciclo superior ao lulismo sem a derrota do bolsonarismo, e sem um ascenso da luta de massas”.
O autor comete um erro de avaliação histórica ao dizer que “não há como abrir um ciclo superior ao lulismo sem a derrota do bolsonarismo”. Tomando lulismo por esquerda; e bolsonarismo por fascismo, o que a história demonstra é que o fascismo surgiu como uma resposta da burguesia ao ascenso da classe trabalhadora. O fascismo foi utilizado para suprimir as tendências revolucionárias do operariado.
Talvez sem querer, Arcary acaba confessando que não tem um programa próprio, essencial para um partido de esquerda –especialmente se se reivindica revolucionário–; sua política fica refém de duas tendências polarizadas: a extrema direita de um lado, e, de outro, a esquerda.
Caso o fascismo vença, Arcary profetiza apocalipticamente que “continuaremos a ver as divisões, rachas e dispersão na esquerda. Será uma regressão, e teremos um intervalo histórico como foi depois de 1964”. Como no Evangelho: haverá choro e ranger de dentes.
Tentando se prevenir do erro cometido anteriormente, Arcary avalia que “a abertura de um novo ciclo superior ao lulismo não pode repousar somente neste desfecho. A improvisação criativa embora tenha um lugar na luta política é perigosa”. Mas não recorre à improvisação quem tem um programa e o materialismo dialético como instrumento de avaliação da realidade.
Valério Arcary afirma que “marxismo é militância”, e aqui é preciso uma correção: é também militância. Como bem escreveu Lênin em O Que Fazer, “sem teoria revolucionária, não pode haver movimento revolucionário”.
Com essa ênfase apenas na militância, Arcary afirma que “vai ser necessário abrir o caminho para novas ferramentas, tanto na esfera dos movimentos sociais, em especial o feminista e negro, quanto para a luta política, que exige um instrumento mais forte do que aqueles que temos hoje disponíveis”. Corroborando assim sua crítica ao legado de revolucionários como Lênin, Trótski, dentre outros – [grifos nossos].
Arcary e o “ciclismo”
No segundo trecho, Valério Arcary escreve: “o que a história nos ensina? Quando pensamos em perspectiva existiram, nos últimos cem anos, cinco ciclos na esquerda no Brasil: o anarco-sindicalista, o getulista, o comunista, o guerrilheiro e o petista/lulista. A passagem de cada um destes ciclos para o seguinte foi determinada por grandes mudanças objetivas no Brasil e no mundo, mas, também, intensas lutas político-ideológicas”.
O trecho é um encadeamento inútil de citações de eventos históricos, mas que tem de bom o fato de mostrar que Arcary passa longe do materialismo dialético. Para ele, determinados acontecimentos interagem em uma relação causa/consequência. Por exemplo: o impacto da derrota do nazifascismo teria aberto o “ciclo comunista”. A Revolução Cubana determinou o “ciclo guerrilheiro”, e assim por diante. A didática arcaryana é uma regressão aos tempos em que estudar História se resumia a decorar datas e nomes, não na interação dialética de forças sociais determinando umas às outras.
Democracia x fascismo
Não é necessário massacrar o leitor com os demais trechos do texto de Valério Arcary, que costuma dar inúmeras voltas tentando demonstrar erudição antes de chegar no que finalmente interessa.
O autor volta a repetir que “a reorganização da esquerda dependerá do desfecho da luta contra o bolsonarismo”, após fazer uma série de considerações sobre a esquerda na Argentina, México, PT, etapa pós-lulista, a importância do Psol etc.
Após ultrapassar uma montanha de entulho o leitor se depara com isto: “a ‘régua’ para definir quem é e quem não é revolucionário não existe. A rigor, há duas posições extremas, mas insatisfatórias: (a) ou revolucionários são todos os que defendem a necessidade de uma revolução; (b) ou trata-se somente de quem liderou uma revolução”.
Embora faça uma ressalva de que “a primeira é muito ampla e a segunda muito estreita”, essa é política de Arcary e seu grupo.
A parte (a), que eles adotam, é uma política de conciliação de classes. Foi utilizada pouco antes de se definir a candidatura de Lula em 2022, quando esses setores da esquerda defendiam que o importante era derrotar o fascismo e nessa “luta” cabia todo mundo que visse a necessidade de derrotar Bolsonaro. Foi proposta frente ampla com o “campo democrático”, composto por João Doria, Ciro Gomes e toda sorte de delinquentes políticos.
No trecho (b), Arcary, com vem fazendo em seus textos, diminui a importância de revolucionários e de seu legado.
Não se pode esperar nada muito diferente de quem andou pregando que, para vencer o fascismo a esquerda precisa se colocar “no campo das democracias liberais”. Ou seja, do imperialismo.
O que Valério Arcary não entende, ou finge, é que não existe contradição entre as “democracias liberais” e o fascismo. Pois é ela que financia, por exemplo, terroristas na Síria, os nazistas na Ucrânia e os genocidas do povo palestino.
Essa política, que tenta se vestir de “novo”, como já foi dito, é a velha colaboração de classes. É um abandono do marxismo que de esquerda conservou apenas a casca.
Trata-se de uma falência política, de gente que abraçou ideologias liberais como o identitarismo e se rendeu de vez à burguesia, inimiga da classe trabalhadora.