‘Uso da Lei Magnitsky contra Alexandre de Moraes é deturpação’, diz criador da lei à BBC

Thais Carrança, Da BBC News Brasil em São Paulo

O uso da Lei Global Magnitsky para impor sanções contra o ministro Alexandre de Moraes é um abuso das intenções da lei e uma deturpação de sua concepção original, avalia William Browder, executivo financeiro britânico que liderou a campanha pela aprovação da lei nos Estados Unidos.

“A Lei Magnitsky foi estabelecida para impor sanções a graves violadores dos direitos humanos e pessoas que são culpadas de cleptocracia em larga escala”, diz Browder, referindo-se a regimes políticos em que governantes e autoridades usam sua posição para enriquecer de forma ilícita.

“Ela não foi criada para ser usada para vinganças políticas. O uso atual da Lei Magnitsky é puramente político e não aborda as questões de direitos humanos para as quais ela foi originalmente elaborada. E, como tal, é um abuso das intenções da lei”, completou o executivo, em entrevista à BBC News Brasil.

O uso da Lei Magnitsky contra Moraes foi anunciado na quarta-feira (30/7) pelo governo americano, que justificou a medida afirmando que o ministro seria responsável por “uma campanha opressiva de censura, detenções arbitrárias que violam os direitos humanos e processos politizados — inclusive contra o ex-presidente Jair Bolsonaro”.

Aprovada durante o governo de Barack Obama, em 2012, a Lei Magnitsky foi criada para punir autoridades russas envolvidas na morte do advogado Sergei Magnitsky, que denunciou um esquema de corrupção estatal e morreu sob custódia em Moscou.

CEO do Hermitage Capital Management, Browder foi o maior investidor estrangeiro na Rússia até 2005, quando foi proibido de entrar no país e incluído na lista negra do governo russo como uma “ameaça à segurança nacional”.

Magnitsky, que era o advogado de Browder em Moscou, morreu na prisão em 2009, após ser acusado de fraude fiscal e condenado a 11 meses de prisão.

“Então fui a público para tentar encontrar uma maneira de fazer justiça por Sergei Magnitsky”, lembra Browder.

Ele conta que muitas das pessoas envolvidas na morte do advogado lucraram com o crime e mantinham seu dinheiro no exterior.

Então Browder teve a ideia de congelar os bens e proibir viagens dessas pessoas aos EUA, o que levou à criação da lei, posteriormente ampliada para poder ser aplicada a violadores de direitos humanos de outros países, para além da Rússia.

Para Browder, o uso da Lei Magnitsky por Trump contra Moraes pode ter consequências graves, comprometendo a integridade da lei e tornando-a passível de ser questionada nos casos em que ela foi legitimamente aplicada.

Mas ele também avalia que há grandes chances de a decisão ser revertida pela Justiça, diante do flagrante uso da lei em desacordo com sua intenção original.

“Acredito que há fortes argumentos para que a decisão seja anulada pelos tribunais”, diz Browder, que tem dois livros publicados no Brasil: Ordem de Bloqueio (2022) e Alerta Vermelho (2016), ambos lançados pela editora Intrínseca.

“A lei não foi usada como foi originalmente concebida. E há a oportunidade para que este juiz [Alexandre de Moraes] recorra aos tribunais para reverter isso.”

Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil – Por que o senhor discorda do uso da Lei Magnitsky contra o juiz Alexandre de Moraes?

Bill Browder – Porque a Lei Magnitsky foi estabelecida para impor sanções a graves violadores dos direitos humanos e pessoas que são culpadas de cleptocracia em larga escala [quando governantes e autoridades usam sua posição para enriquecer de forma corrupta].

Ela não foi criada para ser usada para resolver vinganças políticas.

O uso atual da Lei Magnitsky é puramente político e não aborda as questões de direitos humanos para as quais ela foi originalmente elaborada. E, como tal, é um abuso das intenções da Lei Magnitsky.

BBC News Brasil – O senhor pode explicar um pouco mais sobre o contexto da criação da lei e suas intenções originais ao defendê-la?

Browder – Sergei Magnitsky foi meu advogado russo que descobriu um grande esquema de corrupção do governo russo em 2008.

Ele expôs isso. Ele testemunhou contra os oficiais envolvidos. E, em retaliação por ter feito isso, ele foi preso. Ele foi sistematicamente torturado na prisão e foi assassinado aos 37 anos, após 358 dias de tortura extrema.

O governo russo, incluindo o próprio Vladimir Putin, se fechou em defesa própria e se recusou a responsabilizar alguém pelo assassinato.

Então fui a público para tentar encontrar uma maneira de fazer justiça por Sergei Magnitsky.

E a maneira que decidi fazer justiça foi que muitas das pessoas envolvidas no assassinato dele eram pessoas que lucraram muito com aquele assassinato e mantiveram o dinheiro no exterior.

E então tive a ideia de congelar seus bens e proibir viagens deles aos Estados Unidos. E apresentei isso aos senadores do Partido Republicano e do Partido Democrata. E isso eventualmente foi aprovado. Se chama Lei Magnitsky e foi aprovada por 92 votos a 4 em 2012.

Se tornou uma lei federal durante o governo do presidente Obama. Desde então, ela foi ampliada não apenas para a Rússia, mas também para violadores de direitos humanos estrangeiros em outros países. E ao longo dos anos, ela foi usada em vários casos muito importantes.

BBC News Brasil – O senhor pode dar exemplos?

Browder – Por exemplo, as autoridades chinesas que estiveram envolvidas no genocídio uigur, que organizaram campos de concentração em Xinjiang.

Foi usado contra as autoridades de Mianmar envolvidas no genocídio dos Rohingya em Mianmar.

Ela foi usada contra forças de segurança e indivíduos na Nicarágua que abriram fogo contra manifestantes estudantis pacíficos.

Ela tem sido usada em casos em que há evidências claras, absolutas e contundentes de abusos de direitos humanos, e tem sido usada como uma forma de as vítimas obterem justiça, o que elas não conseguiriam de outra forma.

O uso atual da Lei Magnitsky pelos Estados Unidos contra um juiz envolvido em um processo contra um ex-político, no qual os Estados Unidos disseram claramente que estão irritados porque esse ex-político está sendo processado, não é um uso apropriado da Lei Magnitsky, e é uma deturpação de suas intenções originais.

BBC News Brasil – Essa é a primeira vez que a lei foi mal utilizada ou houve alguma ocasião anterior em que isso ocorreu, que seja do seu conhecimento?

Browder – Nunca vi a lei sendo mal utilizada até agora.

BBC News Brasil – Na sua avaliação, quais são as consequências desse uso indevido da lei pelo presidente Donald Trump?

Browder – Bem, isso simplesmente compromete a integridade da lei. A lei teve imensa credibilidade em envergonhar pessoas que fizeram coisas ruins.

E se de repente ela estiver sendo abusada e usada para vinganças políticas, então isso tira a credibilidade dos outros casos em que indivíduos sofreram sanções.

BBC News Brasil – Como o senhor se sente pessoalmente em relação a essa situação atual, tendo dedicado tanto do seu tempo e energia para essa causa?

Browder – No geral, a Lei Magnitsky não foi aprovada apenas nos Estados Unidos, mas em outros 35 países ao redor do mundo, e continuará sendo uma das ferramentas mais importantes usadas em prol das vítimas de ataques aos direitos humanos.

Mas acho decepcionante que os Estados Unidos façam isso.

BBC News Brasil – É possível que as sanções impostas a Moraes sob a Lei Magnitsky sejam anuladas, seja por meios judiciais ou por uma futura administração após a de Trump?

Browder – Acredito que há fortes argumentos para que a decisão seja anulada pelos tribunais.

A lei não foi usada como foi originalmente concebida. E há a oportunidade para que este juiz [Alexandre de Moraes] recorra aos tribunais para reverter isso.

BBC News Brasil – Já houve alguma reversão antes?

Browder – Ela não foi revertida antes porque não houve abuso da Lei Magnitsky antes. Todos que sofreram sanções antes sofreram sanções adequadamente.

BBC News Brasil – E o senhor acredita que isso pode ser feito nos EUA ou em tribunais internacionais?

Browder – É uma lei americana e pode ser anulada pelos tribunais dos Estados Unidos. E o Poder Judiciário é um poder independente do Poder Executivo.

Então, independentemente do que o presidente [Donald Trump] e seu governo querem, se ficar claro que ele [Moraes] foi injustamente punido com sanções e que a lei foi abusada, então ele tem meios legais para reverter isso.

BBC News Brasil – Depois da sua publicação no X criticando o uso da lei Magnitsky contra Moraes, muitos apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro o criticam por supostamente não entender o contexto brasileiro bem o suficiente para comentar. Como o senhor responde a essas críticas?

Browder – Bem, antes de mais nada, a maioria das pessoas que responderam não são pessoas reais.

Como você sabe, Elon Musk, dono da X, é um grande crítico do juiz [Alexandre de Moraes] porque o juiz tentou calá-lo.

Então eu nem acredito que essas pessoas estejam me criticando de verdade. Não tenho resposta para bots que fazem declarações falsas.

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 01/08/2025