Nesta sexta feira (08/08), o prazo que os EUA impôs a Rússia para aceitar um acordo de paz expirou. A noticia oficial que corre, anuncia que Trump e Putin vão se sentar na mesma mesa para discutir o futuro da guerra nas próximas, não está confirmado se esse encontro terá a presença de Zelensky. Entre o final do prazo do ultimato e a reunião, haverá mais sanções diretas contra a Rússia? Talvez Trump seja cuidadoso e aguarde o resultado das conversas no mano a mano com Putin, talvez não… Lembrem-se que a Rússia é o país mais sancionado do mundo, está expulsa do sistema swift e enfrenta uma guerra indireta contra a OTAN, que por sua vez tem utilizado covardemente a Ucrânia como proxy militar. Mesmo assim, Trump tem ameaçado a impor mais sanções diretas ou secundárias contra a Rússia.
Ao mesmo tempo, Brasil e Índia foram atingidos com tarifas de 50%, as maiores do mundo, tornando seus produtos tarifados praticamente proibitivos no mercado americano. A exposição de motivos para impedir que produtos brasileiros e indianos acessem o mercado norte americano, são explicitamente geopolíticas! A China tem esgrimado muito bem com os EUA, mas está taxada em 30%, e seguem delicadas negociações entre os dois países. A África do Sul também foi taxada em 30% e está na expectativa de não ser prejudicada numa possível revisão da Lei de Crescimento e Oportunidades para a África(AGOA) com os EUA, que tem acusado o governo africano de perseguir fazendeiros brancos.
Está nítido que há uma ofensiva do império americano contra o núcleo central do BRICS, além dos índices tarifários serem impressionantes, cresce a cada dia as ameaças contra o bloco mais importante do sul global. Nesse artigo vamos analisar a dinâmica de dependência dos cinco países fundadores do BRICS em relação ao mercado americano, as dificuldades internas no bloco para elaborar uma resposta unitária imediata, veremos também como o bloco já é uma articulação de relativo sucesso contra o império e os pontos de estrangulamento estratégico que podem fazer Trump recuar com o seu tarifaço.
Evolução das relações comerciais entre EUA e países do BRICS (2015-2024)
Vamos considerar nessa análise o núcleo de países pioneiros do BRICS ( Brasil, Rússia, Índia, China e Africa do Sul), que nesse momento estão sendo alvo de uma agressiva ofensiva geopolítica da administração Trump 2.0. Em primeiro lugar é preciso reconhecer que o simples fato do BRICS existir como uma articulação alternativa para se defender da relação tóxica e unipolar do ocidente já tem sido uma resposta robusta contra os interesses norte americanos, como vamos ver mais a frente. Mas as diferenças do quadro de dependência entre os países que lideram o BRICS em relação ao volume de comercio com a economia dos EUA, é um real obstáculo a ser superado para permitir respostas rápidas e unitárias mais significativas.

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Nos últimos dez anos a Índia foi o país do bloco, que quase dobrou seu volume de comercio com os EUA, de $66 bilhões para $129 bilhões de dólares, esse aumento significativo da dependência em relação ao mercado americano, explica a Índia ser conhecida como o membro do BRICS mais resistente a aceitar que o bloco avance em medidas contrárias aos interesses dos EUA. O comercio bilateral entre Índia e os Estados Unidos se aprofundou na ultima década, as exportações de mercadorias americanas para a Índia dobraram ( $21,5 bi em 2015 para $41,5 bi em 2024), enquanto as importações dos EUA da Índia cresceram de $44,8 bi para $87,3 bi no mesmo período. Os EUA são, de longe, o maior mercado de exportação da Índia, tornando esta relação comercial uma parceria estratégica. Mas as tarifas de 50% aplicadas contra produtos indianos como punição pela compra de petróleo russo feito por Nova Dhéli, está arriscando minar as relações e tem potencial para mudar a postura do primeiro ministro indiano em relação a Trump. Numa primeira resposta, a Índia cancelou a compra de equipamentos militares norte americanos que estava previsto na viagem do ministro da defesa indiano aos EUA. O primeiro ministro indiano Narendra Modi deu uma firme declaração em defesa da soberania de seu país, e aprofundou suas movimentações intra-Brics até então cautelosas. Destaca-se aí uma visita em território chinês ainda esse ano para participar da cúpula da Organização de Cooperação de Shangai – OCS, fato que não ocorre desde 2018.
Os números da tabela acima, também nos mostra que a Rússia é o país que mais retrocedeu na sua relação econômica com os EUA, caindo de $23,5 bilhões para $3,5 bilhões de dólares em volume financeiro comercial. Essa deterioração das relações comerciais se aprofundou especialmente em 2022 com o início da guerra entre Rússia e Ucrânia. Os russos deslocaram suas exportações e importações principalmente para a Ásia e a relação de cooperação com o BRICS, conseguindo sobreviver economicamente, sustentando inclusive seus esforços de guerra com relativo sucesso. A ameaça americana em taxar países que estão fazendo comercio com a Rússia, atinge potencialmente países do BRICS, embora o próprio EUA siga ainda fazendo comercio com os russos, principalmente em relação a produtos estratégicos como vamos ver mais a frente.
Brasil e África do Sul também são países que nos últimos dez anos apresentaram um crescimento significativo no volume de comercio com os EUA, o primeiro teve um crescimento de quase 50% e o segundo de 60%. A China, embora tenha o maior volume comercial com os EUA entre todos os países do BRICS, apresentou uma desaceleração, principalmente a partir de 2018, quando Trump iniciou a guerra comercial contra os chineses em sua primeira administração. Essa complexa relação econômica entre os EUA e os membros do BRICS com distintas gradações de negociação de país para país, é um elemento real de dificuldade para uma retaliação através de uma resposta unitária do bloco. Exigindo uma abordagem habilidosa a ser discutida, para elaboração de uma resposta cirúrgica, que a depender do nível de intensidade e do período de duração das tarifas, poderá mais cedo ou mais tarde obrigar o BRICS a encontrar uma oportunidade de golpear a economia americana de tal forma que Trump não terá outra alternativa, se não, recuar e negociar. Tudo indica que esse momento está cada vez mais próximo…
O comercio intra-BRICS ultrapassou a relação comercial com os EUA
Os números oficiais mostram que embora o comercio entre os países do BRICS com os EUA seja significativo, sua importância para economia geral do bloco está diminuindo em relação ao próprio comercio intra-BRICS. Gráfico 1: Os números abaixo fornecidos pelo U.S. Census Bureau, FMI e Camex, revela essa dinâmica, no qual o comercio entre os membros do bloco está em forte ascensão estrutural.
Entre 2018 e 2019, o comercio entre os países do BRICS ultrapassou em volume o comercio desses mesmos países com os EUA. A guerra comercial iniciada pelos EUA contra a China e as sanções abrangentes do ocidente contra a Rússia foram elementos geopolíticos decisivos que obrigaram os países do bloco a buscar mercados alternativos e aprofundar os laços entre os parceiros do BRICS.
Essa coesão econômica do bloco está em ascensão e expressa nitidamente uma reação defensiva as pressões externas provocadas pelo próprio EUA e aliados ocidentais. Quanto mais cresce o comercio intra-BRICS, maior é a capacidade desses países de diversificar suas parcerias econômicas, mitigando as consequências da guerra tarifária americana. Tudo isso é parte da explicação de como a China conseguiu fazer Trump recuar nas tarifas que chegaram a mais de 100% em abril desse ano, obrigando o governo americano abrir negociações.
Essa articulação do BRICS também tem sido fundamental para criar condições para a Rússia sustentar uma guerra a mais de três anos, acumulando um relativo crescimento econômico nesse período. Não há duvidas que Brasil, África do Sul e Índia também estão hoje em melhores condições para enfrentar as agressões comerciais de Trump, fortalecendo as parcerias no interior do bloco, que ainda tem uma ampla margem para se ampliar, especialmente pela adesão de mais membros nos últimos dois anos.
Embora exista uma dificuldade conjuntural em apresentar uma resposta imediata e unificada do bloco contra o tarifaço de Trump, a tendência predominante revela que a evolução da cooperação e parcerias estratégicas entre os membros plenos e parceiros do BRICS pode no longo prazo criar as condições para que boa parte dos países do sul global sejam cada vez menos dependentes dos EUA, diminuindo a relevância e a capacidade de chantagem global da economia americana. Não é uma obra do acaso, que a demanda de países que desejam aderir ao BRICS, tem apresentado um crescimento significativo nos últimos anos.
Os pontos de estrangulamento estratégico para a economia dos EUA
Os críticos do BRICS, seja pela direita ou pela esquerda, frequentemente tem destacado as divisões internas do bloco, a falta de agenda unitária e sua incapacidade de costurar políticas consensuais para responder eventos da conjuntura geopolítica. Mas desde que Trump iniciou sua segunda administração, a aplicação de tarifas e sanções afetaram todos os cinco membros originais do bloco em várias dimensões, se tornando uma ameaça comum. Os dados comerciais estão mostrando uma correlação direta entre a imposição de barreiras comerciais pelos EUA e a aceleração dos fluxos comerciais intra-BRICS.
Para além da ampliação de circuitos alternativos entre países do sul global para se proteger das agressões e ataques do ocidente que tem usado o comercio exterior cada vez mais como ferramenta política. Os países do BRICS possuem o controle de determinados serviços e bens que são estratégicos para economia americana, revelando uma teia complexa de interdependências. A vulnerabilidade em várias cadeias de suprimentos críticos que são vitais para segurança nacional dos americanos dão a países membros do BRICS a capacidade de nocautear Trump nessa luta comercial que ele mesmo iniciou numa resposta rápida e imediata como vamos ver a seguir:
Urânio enriquecido – A Rússia é atualmente o maior produtor mundial de urânio enriquecido, sendo responsável por 44% da capacidade de produção global, no qual os EUA tem uma grave dependência, sem condições de substituí-lo a curto prazo por outros fornecedores. Mesmo sancionando a Índia por comprar petróleo dos russos, os EUA também ajudam a financiar a maquina de guerra de Putin ao comprar urânio enriquecido. Ver em: https://www.atlanticcouncil.org/blogs/securing-energy-independence-the-us-path-to-resilient-enriched-uranium-supply-chain/
Processamento de Terras Raras – A China controla aproximadamente 80% do processamento dos elementos de terras raras do planeta, que são insubstituíveis para a produção de equipamentos militares de alta tecnologia entre outros produtos da industria americana. Aproximadamente 70% das importações dos EUA de terras raras tem origem na China. Aliás, foi o tema das terras raras, um dos elementos chaves que obrigou Trump a recuar, diminuir as tarifas sobre produtos chineses e estabelecer negociações. Ver em: https://www.scmp.com/news/china/science/article/3320951/how-china-used-rare-earths-and-us-playbook-turn-chip-tap-again
Nióbio – O Brasil é responsável por aproximadamente 90% da produção global desse mineral, e 66% das importações de nióbio dos EUA tem origem no Brasil, que tem utilidade fundamental na industria aeroespacial, motores a jato e aço de alta resistência. Ver em: https://www.wilsoncenter.org/article/brazils-critical-minerals-and-global-clean-energy-revolution
Metais do grupo da Platina ( PGMs) – A Africa do Sul é responsável por 76% da produção global e aproximadamente 90% das importações dos EUA desse metal tem origem no país de Nelson Mandela. Trata-se de um produto amplamente utilizada na industria automotiva americana. Ver em: https://www.ainvest.com/news/platinum-play-south-africa-tensions-shaping-critical-minerals-investment-2505/
Medicamentos Genéricos – A Índia responde por 40% das importações de medicamentos genéricos dos EUA, que são fundamentais para os custos mais baratos da saúde publica americana. Ver em: https://www.ndtv.com/india-news/any-tariff-on-pharma-will-hit-india-as-40-exports-go-to-us-report-9049267
Cada um desses elementos são insubstituíveis a curto prazo e representam pontos de estrangulamento em cadeias de suprimento que podem ser explorados para fins geopolíticos, especialmente numa resposta coordenada dos países membros do BRICS contra o tarifaço de Trump. A suspensão ou diminuição da oferta, ou ainda a aplicação de tarifas de exportação sobre esses produtos para os EUA, tem capacidade de fulminar a economia e a segurança nacional americana, obrigando os EUA a negociar ou recuar em sua guerra comercial. Na pratica o BRICS-5, já acumula condições de nocautear Trump, a decisão esbarra em diferenças no interior do bloco, como também em disputas na política interna de cada país.
Sistemas de pagamentos alternativos e desdolarização
A percepção que o acesso ao dólar pode ser restringido por motivações políticas acendeu um sinal de alerta no mundo, e o BRICS representa hoje a principal possibilidade de desenvolvimento eficaz de sistemas de pagamentos com uso de moedas locais como alternativa ao dólar. A tensão geopolítica provocada pelas potencias ocidentais tem deslocado o fluxo comercial privilegiando as relações intra-BRICS, o que, por sua vez, necessita de sistemas financeiros alternativos para garantir sua sustentabilidade. A liquidação em moedas locais reduz os custos de transação e, mais importante, isola o comercio de potenciais sanções secundárias dos EUA ou de outras pertubações financeiras.
O uso de moedas locais no comercio intra-BRICS já é uma realidade e está se ampliando em diversas transações. A presidenta do NBD ( Banco do BRICS), Dilma Roussef, em evento promovido pelo BNDES, defendeu o uso de moedas locais, e anunciou que o NBD tem a meta de ampliar para 30% da sua carteira em moedas locais em 2026, hoje está em 25%. Ela disse em entrevista para jornalistas:
“ O que acontece muitas vezes é qu o acesso à moeda internacional é considerado não adequado para financiamento de longo prazo, porque durante 30 anos, por exemplo, para uma hidrelétrica, ou 20 anos para o financiamento de outras fontes de energia, você terá o risco crescente de ter situações que você não controla…
… Financiamentos denominados em moedas locais, eles ajudam a mitigar riscos cambiais relacionados a moedas locais, eles ajudam a mitigar riscos cambiais relacionais a moedas avançadas, porque você não controla a política monetária que esses países adotam e, portanto, quando a sua moeda se desvaloriza e a taxa de juros sobe, o setor privado, por exemplo, não tem condições de suportar a pressão no seu balanço financeiro”. ( Dilma Roussef, Agencia Brasil. 09/07/2025)
No dia 15 de julho, o representante comercial dos EUA abriu uma investigação sobre o que está sendo considerado como “praticas desleais” do Brasil. Entre os elementos em investigação está o PIX, que é um avançado sistema de pagamentos elaborado pelo banco central brasileiro. O PIX é um serviço público e gratuito, e tem inclusive ampliado seu alcance para além das fronteiras do país, e está afetando diretamente o interesse de grandes conglomerados americanos que controlam sistemas de pagamentos privados de cartões de crédito, como Visa e Mastercard, como também plataformas de pagamentos lidados as BIGTECHS, que estão perdendo mercado e bilhões de dólares na medida que cada vez mais pessoas estão aderindo ao PIX no seu cotidiano.
O governo americano teme que os países do BRICS consigam integrar seus sistemas de pagamentos digitais em moedas nacionais e passe a não depender mais do sistema SWIFT, como também esse método inevitavelmente acelera a diminuição do uso do dólar como moeda para trocas economicas transnacionais e como referencia para reservas cambiais. Essa desdolarização impulsionada em primeiro lugar pela falta de confiança na própria economia e praticas comerciais americanas, também tem potencial para nocautear o “privilegio exorbitante” do dólar.
O poder do dólar é um dos pilares mais importantes que permitem os EUA financiar sua dívida que já ultrapassou mais de 120% do PIB americano e sustentar centenas de bases militares por todo planeta. Não é possível saber quando as negociações intra-BRICS vão conseguir chegar num acordo para gestar um sistema de pagamento integrado que consiga excluir as chantagens e sanções comerciais ocidentais, ao mesmo tempo oferecer baixos custos, comodidade, confiança e agilidade nas transações. Mas podemos observar que essa tendência não é conjuntural, trata-se de um realinhamento estrutural da economia global do século XXI.
Diante da capitulação da União Europeia, o BRICS se tornou a vanguarda da desdolarização
Em artigo publicado no jornal frances “Le Monde”, o professor da Escola de Economia de Paris Thomas Piketty, explica que a agressividade de Trump é produto da fragilidade sem precedentes da economia americana, ler em: “ https://archive.is/Sse1y#selection-2743.0-2743.651
Segundo Piketty: “A novidade da crise atual é que os Estados Unidos vêm perdendo o controle do poder global e agora se encontram em uma situação de fragilidade financeira sem precedentes. Isso explica a agressividade do governo Trump. No entanto, ceder a exigências, como os europeus acabaram de fazer em relação aos orçamentos militares (que são, em grande parte, transferências para a indústria de defesa dos EUA) ou à tributação multinacional, é a pior estratégia possível. É hora de a Europa se livrar da complacência e unir forças com as democracias do Sul Global para reconstruir o sistema comercial e financeiro em apoio a um modelo diferente de desenvolvimento”
( Thomas Piketty. Le Monde. 11/08/2025)
Esse artigo está correto em denunciar a capitulação europeia diante de Trump. Piketty é francês, por amor a seu país e por suas críticas aos americanos, está tentando alertar as autoridades europeias do abismo que estão se metendo. Mas somente um levante de massas da classe trabalhadora poderá derrotar a atual elite política europeia e realinhar o velho continente com a dinâmica global em curso, que inevitavelmente passa pelo o que está acontecendo no sul global. O BRICS está reunindo todas as condições para cumprir um papel de vanguarda, mas não tenhamos ilusão, esse processo não irá avançar progressivamente sem um enfrentamento direto contra os interesses do imperialismo ocidental, exigindo internacionalismo na luta de classes para defender a soberania dos países que já estão e serão ainda mais agredidos pela fúria do projeto MAGA, que poderá ir a guerra se preciso for, para não perder o trono.
Foram apenas seis meses de governo Trump e parece que já foram anos de mandato, e o pior ainda está por vir, a história nos mostra que um império nunca entrou em declínio sem lutar, agredir e causar desarranjos sistemáticos nas relações internacionais em várias dimensões. É um erro grave subestimar a capacidade dos EUA em defender seus interesses e causar instabilidade em outros países para tentar reverter sua situação atual. O possível declínio da condição de um mundo unipolar e a ascensão da transição para um sistema cada vez mais multipolar é uma forte tendência no momento, o BRICS sem dúvida pode cumprir um papel ainda mais progressivo, mas não nos enganemos, o destino da arquitetura geopolítica global está em aberto e depende totalmente da coragem em derrotar o trumpismo e a extrema direita mundial aliada do império.