Gilberto Gil compôs Palco em 1980 como uma despedida. Ele achava, àquela altura, que devia dar um novo rumo à vida, longe da música. Mas a canção acabou por ter efeito contrário: ela não apenas se tornou um grande sucesso como inaugurou uma nova fase na carreira do artista, marcada pela reflexão humana.

Na primeira metade da década de 1980, Gil lançou uma sequência de músicas sobre o sentido da existência, como Luar, Cores Vivas e Se Eu Quiser Falar Com Deus, faixas do álbum A Gente Precisa Ver o Luar (1981); Andar com Fé, Drão e Esotérico, de Um Banda Um (1982); e ainda Pessoa Nefasta e Tempo Rei, canções do Raça Humana (1984).

Em Tempo Rei, Gilberto Gil sintetizava em versos seu momento: Não me iludo/ Tudo permanecerá do jeito que tem sido/ Transcorrendo, transformando/ Tempo e espaço navegando todos os sentidos.

Não por acaso, a canção acabou por dar título ao excelente documentário Tempo Rei, de 1996, disponível no Canal Curta!, que celebrava os 30 anos de sua carreira. Nele, Gil recupera sua infância e as influências musicais e espirituais que acabaram por constituí-lo.

Essa mesma ideia, a do tempo soberano, é retomada no título de sua derradeira turnê: Tempo Rei, a Última Turnê. Aos 82 anos, o cantor dá início à sequência de shows no sábado 15, por Salvador, e seguirá por pelo menos nove cidades brasileiras. Serão 18 shows até o fim do ano.

“Quero continuar fazendo música em outro ritmo”, afirma o artista, de 82 anos, no texto sobre o show

O músico continua, aparentemente, a não se iludir, mas segue a pregar a transformação do viver, dentro do ritmo que a idade e o temperamento pedem: “Quero continuar fazendo música em outro ritmo”, afirma, no texto de divulgação da turnê. No repertório estarão, por certo, tanto as canções da década de 1980 quanto as de diferentes momentos de sua trajetória. A carreira de Gilberto Gil é, afinal de contas, marcada por sucessos que atravessaram gerações.

O músico deu os primeiros passos profissionais na música gravando jingles. Um grupo vocal do bairro onde vivia, em Salvador, descobriu suas habilidades excepcionais e o levou a uma agência. Em 1963, foi apresentado a Caetano Veloso pelo produtor Roberto Sant’Ana. A amizade se cristalizou nas inúmeras noites em claro passadas entre conversa e música.

Gilberto Gil mudou-se para São Paulo em 1965, após receber uma proposta de emprego da Gessy Lever. Mas sua intenção era outra: encontrar-se com Caetano e Maria Bethânia, que estavam morando na cidade. Não demorou para que largasse a empresa e começasse a ganhar relevo como artista.

Em 1967, conquistou o segundo lugar no Festival de Música Popular Brasileira com Domingo no Parque e lançou seu primeiro álbum autoral, Louvação. Foi, porém, dois anos depois, no disco que leva seu nome, com músicas basicamente compostas entre o momento em que foi preso pela ditadura e o exílio em Londres, que teve seu primeiro grande sucesso: Aquele Abraço (1969), canção que reflete o momento de despedida do País.

Após o retorno ao Brasil, em 1972, Gil lançou o clássico Expresso 2222, que condensa as experimentações do Tropicalismo, o aprimoramento técnico e o pop ­rock absorvido no exílio e misturado às referências e vivências nordestinas.

“Laços. A relação afetiva e musical com a família foi tema do reality Em Casa Com os Gil. A parceria com Caetano é outro marco de sua trajetória – Imagem: Familia Gil e Redes Sociais Caetano Veloso”

O disco seria o ponto de partida para uma etapa também muito marcante de sua carreira, a chamada fase “Re”, na segunda metade dos anos 1970. Nela, o artista oferece uma nova estética, voltada às questões do homem negro, e a redescoberta de suas raízes, com canções de forte acento musical nordestino.

Vêm desse período discos fundamentais: Refazenda (1975), Refavela (1977) e Realce (1979), esse último com as magistrais faixas Realce, Super-Homem, a Canção e Toda Menina Baiana. Também costuma ser atribuído à fase “Re” o álbum ao vivo com Rita Lee Refestança (1978).

Em 1976, Gil voltou a ser preso, dessa vez, por porte de maconha, enquanto fazia uma série de shows com Caetano, Bethânia e Gal Costa, que acabou virando o disco Doces Bárbaros.

Ao fim dessa década, no lançamento de Realce, ele conheceu Flora Gil, com quem se casou. Flora teve um papel importante como impulsionadora de sua carreira. Gil tinha alcançado status de pop star. Pareceu, no entanto, sentir-se angustiado diante do futuro artístico.

A crise do início da década de 1980, que gerou Palco e um desejo de despedida, não só o conduziu a uma produção de perfil mais existencial como o fez experimentar outros lugares no mundo, fora do palco onde sua alma cheirava a talco feito bumbum de bebê.

No fim da década de 1980, de novo como se ecoasse os próprios versos – Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei/ Transformai as velhas formas do viver/ Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei –, chegou a anunciar que disputaria a prefeitura de Salvador. Acabou, no fim, concorrendo por uma vaga na Câmara Municipal e foi eleito vereador, pelo PMDB, em 1988. Dez anos depois, assumiria o Ministério da Cultura (MinC) no primeiro mandato do presidente Lula.

Nesse período, sua produção se torna mais esparsa e vai, mais uma vez, se afastando das referências estéticas anteriores. No conceitual Quanta (1997), ele estabelece uma relação da arte com a ciência. No ano seguinte, com O Sol de Oslo, apresenta uma sonoridade marcadamente contemporânea. Em Kaya N’Gan Daya (2002) faz uma homenagem a Bob Marley.

Em Ok Ok Ok (2018), seu último álbum de inéditas, Gil critica o momento sombrio do País e fala de si, da família e do afeto. É um disco em que explicita a p­reocupação com o tempo e com a vulnerabilidade trazida pelo avançar da idade. Pouco antes, ele havia passado por um tratamento de insuficiência renal crônica. No disco, se avizinham os sinais da despedida musical agora oficializada.

Na banda de Última Turnê de Gilberto Gil estão três de seus filhos – Bem Gil (guitarra), José Gil (bateria) e Nara Gil (voz) – e dois de seus netos – João Gil (baixo) e Flor Gil (voz). A forte ligação de Gil com a família e de todo o clã com a música foi, inclusive, tema de dois realities produzidos pela PrimeVideo: Em Casa Com os Gil (2022) e Viajando Com os Gil (2022).

Completam a banda Mariá Pinkusfeld (voz), Diogo Gomes (sopro), Thiago Oliveira (sopro), Marlon Sete (sopro), Danilo Andrade (teclado), Leonardo Reis (percussão), Gustavo Di Dalva (percussão), Mestrinho (sanfona) e um quarteto de cordas. A presença do sergipano Mestrinho, um dos maiores sanfoneiros da atualidade, reflete a forte influência do instrumento na carreira do baiano.

Sua obra, que transita do som do sertão ao pop inglês, tem o poder de tocar e envolver multidões

Gilberto Gil nasceu em Salvador no dia 26 de junho de 1942, mas, com um mês de vida, se mudou para Ituaçu, na Chapada Diamantina, onde seu pai, médico, foi trabalhar. Gil ficou lá até os 9 anos. Foi nesse período que aprendeu a admirar Luiz Gonzaga, presença constante nos alto-falantes espalhados pela pequena cidade.

Ao retornar a Salvador, Gil foi estudar acordeão, instrumento com o qual fez suas primeiras apresentações aos 15 anos. Por influência de João Gilberto, no início da década de 1960, substituiu o acordeão pelo violão, que se tornaria sua marca registrada.

Apesar disso, a sanfona, o forró e o baião continuaram a ser fonte de inspiração, estando presentes em composições próprias, como Lamento Sertanejo, feita com Dominguinhos, e em canções que escolheu interpretar, como Eu Só Quero Um Xodó (Dominguinhos e Anastácia) e Esperando na Janela (Targino Gondim, Manuca Almeida e Raimundo do Acordeon).

Outro elemento que sempre esteve presente em sua obra é a fé, especialmente aquela relacionada à ancestralidade. O álbum Gil Jorge Ogum Xangô (1975), feito em parceria com Jorge Ben Jor, celebrando os orixás, o samba e a música negra americana, foi um marco. Refavela reflete as experiências vividas na Nigéria, onde foi participar de um festival, em 1977. Um Banda Um é uma referência à sua relação com a religião afro-brasileira.

Mas a fé, para Gil, está muito além da adesão a uma religião ou conjunto de crenças, como ele mesmo cantou em Andar com Fé: Certo ou errado até/ A fé vai onde quer que eu vá/ Oh, oh/ A pé ou de avião/ Mesmo a quem não tem fé/ A fé costuma acompanhar/ Oh, oh/ Pelo sim, pelo não.

No álbum Quanta, ele criticou o mercado da fé na canção Guerra Santa, e, em 2010, lançou o disco Fé na Festa, em que canta forró, baião e xaxado de sua autoria. Nesse álbum, a faixa Não Tenho Medo da Vida é uma resposta a outra composição sua, Não Tenho Medo da Morte, de 2008.

Sua obra propõe um constante diálogo entre a música e a reflexão, estabelecido de maneira serena e sutil, sendo capaz de, ao mesmo tempo, entreter e fazer meditar. Sua música, que transita por diferentes ritmos – do som do sertão ao pop inglês –, tem o poder de tocar e envolver multidões. Tempo Rei, a Última Turnê celebrará a longa e profícua trajetória de um artista singular e incomparável. •

Publicado na edição n° 1353 de CartaCapital, em 19 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Tempo soberano’

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Last Update: 13/03/2025