Sakamoto: Mulheres estão indo às ruas hoje pela radical exigência de não serem mortas

Protesto contra feminicídio na Paulista

Por Leonardo Sakamoto, no UOL

Vivemos um epidemia de feminicídios dentro da já instalada epidemia de feminicídios.

“Ainnnnn, mas também morrem homens”, “E as mulheres que matam os homens?”, “Elas querem privilégios!”, “Os homens estão encurralados, precisamos fazer algo”. Não, meu amigo, o problema é que algo já está sendo feito, e se traduz em corpos.

Em poucos dias, no Rio, um servidor público matou duas colegas, pois não aceitava ser chefiado por mulheres. Em Florianópolis, uma professora foi estuprada e morta quando ia para a aula de natação. Em Brasília, o corpo de uma cabo do Exército foi encontrado carbonizado —um soldado confessou o feminicídio. E, em São Paulo, um homem disparou contra a ex-mulher que trabalhava em uma pastelaria, não aceitava o fim do relacionamento. E outro atropelou e arrastou uma mulher, levando à amputação das duas pernas — ela segue em risco de morte.

Esses não são todos os homicídios cuja razão é a mulher ser mulher nesse período, apenas os que ganharam repercussão na mídia.

Nós, homens, estamos matando mais mulheres. Por isso, mulheres estão indo às ruas em cidades de todo o país, neste final de semana, para denunciar o aumento no número de casos de feminicídio.

Mesmo sem contabilizar os de novembro e dezembro, a capital paulista já bateu o recorde do número na série histórica começada em 2018, segundo dados da Secretaria Estadual de Segurança Pública de São Paulo. E olha que, em 2024, o país já tinha batido o recorde de feminicídios, com 1.492 —quatro por dia, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Homens adultos e jovens armaram-se e partiram para a violência a fim de reagir à perda dos seus privilégios diante da luta das mulheres pelos seus direitos e pelo seu espaço. E aceitam socar e matar quem quer que seja em nome disso. Como já disse aqui um rosário de vezes, simplesmente aumentar a pena não basta. Porque a maior parte dos assassinos não pondera tempo de cadeia antes de cometer um feminicídio. Temos que mudar a cultura que torna a morte e a violência contra mulheres tolerável, aceitável, recomendável.

Ato contra feminicídio em São Paulo

Isso começa por cada um de nós parar com a ladainha do “não tenho nada a ver com isso porque não mato ninguém” e do “não é comigo, sou aliado na causa”. Não, Pequeno Gafanhoto, todos nós, por menos idiotas que sejamos (e somos bastante idiotas), reproduzimos em maior ou menor grau esse modelo de merda em que estamos inseridos.

Livrar-se dele não demanda apenas leitura de um (importante) livro de bell hooks e a repetição de meia dúzia de groselhas de esquerdomacho. Não existe diploma de graduação em “Desconstrução” que nos livre facilmente dessa formação. É trabalho para toda uma vida.

Nesse sentido, em uma sociedade historicamente estruturada em torno da violência de gênero, nossa responsabilidade como homens não é apenas evitar que sejamos vetores do sofrimento simbólico, psicológico ou físico das mulheres cis e trans. Não basta cada um fazer sua parte para que o mundo se torne um lugar melhor. Se você apenas fica em silêncio, sinto lhe informar que tem optado pela saída fácil da delinquência social.

Nesse sentido, em uma sociedade historicamente estruturada em torno da violência de gênero, nossa responsabilidade como homens não é apenas evitar que sejamos vetores do sofrimento simbólico, psicológico ou físico das mulheres cis e trans. Não basta cada um fazer sua parte para que o mundo se torne um lugar melhor. Se você apenas fica em silêncio, sinto lhe informar que tem optado pela saída fácil da delinquência social.

Nós, homens, temos a responsabilidade de educarmos uns aos outros, desconstruindo nossa formação machista, explicando o que está errado, impondo limites ao comportamento dos outros quando esses foram violentos, denunciando, se necessário for. Não é censurar a liberdade de outras pessoas, pelo contrário. Esses são atos para ajudar a garantir que as mulheres possam desfrutar da mesma liberdade que nós temos — liberdade que nossos atos e palavras sistematicamente negam a elas.

Sem mudar o caldo do que é aceitável e do que não é, não tem como mudar a cultura que banaliza e incentiva o feminicídio. Não é tornar as conversas do dia a dia chatas, moralistas, hipercodificadas, barrocas ou acadêmicas, e sim ajudar o outro a perceber a complexidade do mundo em que vive e a construir um novo sentido para as coisas. Um sentido que não trate mulheres como objetos descartáveis à nossa disposição.

Por exemplo, ajudar a mudar a direção do senso comum. A maioria dos casos de violência é cometida na própria residência das vítimas, ou seja, no local que elas consideravam seguro. Ironicamente, parte do foco do debate público sobre violência é centrada na falsa ideia de que o perigo vem apenas daquilo que é desconhecido ou de fora. E que o porto seguro é a família e a religião, enquanto a violência vem da arte, da cultura, da educação.

As estatísticas e grandes casos de comoção nacional mostram o contrário, que também vêm daqueles em quem mais confiamos —líderes espirituais, médicos, padres, maridos, namorados, pais, tios, avôs, irmãos, primos, filhos, amigos, colegas de trabalho. E, por vezes, denúncias são soterradas em montanhas de silêncio para manter as aparências. Isso quando são levadas a sério.

A verdadeira “ideologia de gênero” é martelada cotidianamente em nossas cabeças para que acreditemos que nós, homens, temos mais valor do que mulheres, naturalizando a violência contra a mulher e fazendo com que a nossa opinião de homem tenha mais valor que as delas. E que podemos nos vingar quando essa estrutura é questionada.

Essa ideologia contemporiza quando a mulher é transformada em objeto de prazer para ser violentada dentro da própria casa e alvo de ejaculação em trens e ônibus; chama o assédio sexual e o desrespeito de “simples elogio” ou “brincadeira”; declara o corpo delas como propriedade masculina, tentando proibir até abortos de crianças em caso de estupro; faz com que elas se sintam culpadas pela violência que sistematicamente sofrem; torna o disparate tão normal a ponto de nunca ser preciso pedir desculpas, mas, pelo contrário, faz com que esperemos delas a desculpa pela nossa própria agressão.

Enquanto isso, as reclamações delas, de que é necessário dar um basta a isso, são alardeadas como “ideologia de gênero”. Sim, é ridículo, mas isso dá voto e pega em cheio quem terceirizou o senso crítico.

Essa qualificação, é claro, vem de um processo que envolve escolas, famílias, sociedade civil e mídia. Em tese, seria um processo lento, porque passa pela formação de visão de mundo. Mas mulheres continuam a ser agredidas, estupradas e mortas simplesmente por serem mulheres na terceira década do século 21. Portanto, não temos o luxo de contar com esse tempo.

Posar de espectador inocente enquanto a engrenagem que nos formou continua triturando vidas diante de nossos olhos é ser cúmplice. Se a cada mulher assassinada seguimos reagindo com choque performático e, no dia seguinte, voltamos a tolerar os mesmos machismos que pavimentam o caminho do feminicídio, então somos parte ativa da continuidade desse horror.

Ou rompemos agora com essa pedagogia da crueldade (enfrentando nossos iguais, desnaturalizando nossas desculpas, desmontando nossos privilégios) ou continuaremos assistindo a esse massacre cotidiano como se fosse uma tragédia inevitável. Quando, na verdade, é apenas o reflexo mais brutal do mundo que, repito, nós, homens, todos nós, sem exceção, insistimos em manter de pé.

Em tempo: a Agência Brasil reuniu informações sobre atos em algumas cidades: São Paulo (SP): 14h, vão do Masp; Curitiba (PR): 10h, praça João Cândido; Campo Grande (MS): 13h, av. Afonso Pena; Manaus (AM): 17h, largo São Sebastião; Rio de Janeiro (RJ): 12h, Copacabana; Belo Horizonte (MG): 11h, praça Raul Soares; Brasília (DF): 10h, Feira da Torre de TV; São Luís (MA): 9h, praça da Igreja do Carmo; Teresina (PI): 17h, praça Pedro II.

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