Receitas do Tesouro crescem acima das despesas e déficit federal desaba

por Lauro Veiga Filho

A grande imprensa corporativa tem se especializado, já há algum tempo, na manipulação desabrida de dados e informações, transformados em arma política, para vender o peixe apodrecido da mentira deslavada e direcionar a opinião pública a conclusões falseadas sobre o cenário econômico. Um dos maiores jornalões paulistanos, outrora autoproclamado como “defensor da democracia”, decidiu abrir manchete, na sexta-feira, 21, para uma suposta “reportagem” sugerindo que as despesas do governo central estariam crescendo num ritmo muitas vezes mais acelerado do que as despesas, o que faria explodir o déficit primário, levando a uma escalada da dívida pública, já que a equipe econômica estaria se recusando a cortar despesas.

A “matéria” demonstra o alinhamento com interesses políticos inconfessos e a rendição incondicional da imprensa corporativa aos ditames dos mercados e, mais especificamente, à retórica exercitada pela “esquadrilha austericida”. Para isso, certo tipo de jornalista e analistas em geral recorrem a artifícios para falsear dados, misturando propositadamente realidade e mentiras para alimentar um clima negativo em relação à situação fiscal do setor público, com o nítido propósito de aprofundar o desmonte do Estado. E por desmonte aqui entenda-se a derrubada de toda e qualquer política que beneficie a população de renda mais baixa e que, por isso mesmo, mais depende de políticas públicas e dos serviços prestados pelos governos.

Durante a pandemia, as despesas do governo central (e dos governos regionais) foram inchadas para atender à emergência sanitária e combater o Sars-COV-19, situação que perdurou até 2021, com algum efeito sobre 2022, quando os números da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) chegaram a mostrar uma (falsa) melhora na área fiscal, com saldo positivo entre despesas e receitas quando excluídos os gastos com juros. Neste caso, a “melhora” deveu-se principalmente ao calote aplicado pela gestão passada ao pagamento de precatórios e ainda ao acerto devido aos Estados por conta da redução unilateral do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre combustíveis.

A retórica desmascarada

Ainda que parte dos dados relativos aos primeiros 29 meses do governo atual continue “contaminada” por despesas extraordinárias, que tendem a não se repetir nos exercícios seguintes, a coluna optou por comparar aquele período com igual intervalo anterior à pandemia, buscando reduzir distorções (ainda que não totalmente). Nessa comparação, que toma dados acumulados entre janeiro de 2017 a abril de 2019 e, numa fase mais recente, entre janeiro de 2023 e abril de 2025, devidamente atualizados com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as receitas líquidas cresceram mais aceleradamente, superando a variação observada para as despesas totais, permitindo uma redução vigorosa do déficit primário – o que contraria frontalmente a retórica “austericida”.

Em 2022, especificamente, segundo o Ministério da Fazenda, o aumento das despesas deveu-se principalmente à incorporação de R$ 168,0 bilhões ao orçamento federal, como parte da PEC da transição, de forma a evitar “paralisação ou redução expressiva de programas como o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida, o Farmácia Popular e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)” (Folha de S.Paulo, 21.06.2025).

Naquele primeiro período, que vai de janeiro de 2017 a abril de 2019, a STN registrou receita líquida acumulada em pouco mais de R$ 4,140 trilhões, a valores de abril deste ano, diante de despesas ligeiramente abaixo de R$ 4,503 trilhões, deixando um déficit primário (ainda sem os juros) de R$ 362,541 bilhões. Tomados a valores nominais, as receitas corresponderam a 17,73% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo dados brutos do Banco Central (BC), com as despesas e o déficit representando, pela ordem, 19,27% e 1,55%.

Numa etapa mais recente, entre janeiro de 2023 a abril deste ano, as receitas líquidas, em termos reais, subiram para R$ 5,137 trilhões, crescendo 24,08% – ou seja, R$ 997,104 bilhões a mais na comparação com os valores acumulados entre janeiro de 2017 e abril de 2019. As despesas totais aumentaram 18,91% na mesma comparação, chegando a R$ 5,354 trilhões, em torno de R$ 851,330 bilhões a mais. Vale dizer, as receitas líquidas apresentaram uma variação em torno de R$ 145,774 bilhões superior ao avanço registrado pelas despesas, o que permitiu que o déficit primário sofresse baixa em igual proporção, encolhendo para R$ 216,767 bilhões. A STN registrou, neste caso, uma queda real de 40,21%. Comparado ao PIB, o déficit caiu de 1,5% para 0,74% num ajuste muito próximo de um ponto percentual sobre o PIB (mais precisamente, o déficit anotou baixa de 0,81 pontos).

A falsa “gastança”

As despesas totais em relação ao PIB, dado propositadamente ignorado pela imprensa corporativa, recuaram de 19,27% para 18,90%. Muito nitidamente, a “gastança” sobrevive apenas e unicamente na retórica “austericida”, como forma de abrir espaço para que o desmonte do Estado se complete, com limites mais rigorosos a despesas sociais, desvinculação dos gastos com saúde e educação, com o objetivo igualmente único de desviar mais recursos para o pagamento de juros à minoria de rentistas que de fato comanda o País.

Na verdade, quando consideradas em valores nominais, as despesas cresceram em velocidade inferior à variação do PIB, com alta de 64,21% diante de um avanço de 67,50% para o total de riquezas produzidas pelo País entre os dois períodos considerados neste artigo. As receitas primárias, ao contrário, anotaram incremento de 71,53%.

Mais ainda. O ajuste se deu com crescimento das chamadas despesas sociais, incluindo na conta o pagamento de abono e seguro desemprego, renda mensal vitalícia (já somando os Benefícios de Prestação Continuada), repasses da União para o Fundeb (que financia a educação), Bolsa Família e despesas obrigatórias e discricionárias com saúde e educação, deixando de fora benefícios previdenciários. Tudo somado, essa classe de gastos subiu de R$ 981,905 bilhões para R$ 1,538 trilhão, em termos reais, num salto de 56,63% (ou algo como R$ 556,065 bilhões a mais). O grupo respondeu por pouco mais de dois terços do aumento das despesas totais – mais precisamente, a contribuição chegou a 65,32%.

Na mesma linha, o investimento do governo central experimentou elevação real de 19,94% entre os mesmos períodos, subindo de R$ 162,117 bilhões para R$ 194,437 bilhões, correspondendo a um acréscimo de R$ 32,320 bilhões.

A verdadeira “gastança”

Em outro dado “escondido” pelo noticiário e analistas do mercado, as despesas com juros cresceram mais do que os gastos sociais, saltando 61,09% em termos reais, de R$ 1,116 trilhão para quase R$ 1,798 trilhão, quer dizer, quase 17% mais do que todas as despesas sociais. Em valores nominais, a relação entre despesas com juros e o PIB disparou de 4,77% entre janeiro de 2017 e abril de 2019 para 6,36% no acumulado entre janeiro de 2023 a abril deste ano.

Os desembolsos para fazer frente aos juros foram responsáveis quase integralmente pelo aumento do déficit nominal, resultado da diferença entre receitas líquidas e despesas integrais do governo central. Ao contrário do que ocorreu com o resultado primário, o déficit nominal avançou de R$ 1,549 trilhão para praticamente R$ 2,060 trilhões, num salto de 41,21% em termos reais, nada menos do que R$ 601,089 bilhões a mais. Como proporção do PIB, em valores correntes, o rombo foi elevado de 6,23% para 7,26%.

Lauro Veiga Filho – Jornalista, foi secretário de redação do Diário Comércio & Indústria, editor de economia da Visão, repórter da Folha de S.Paulo em Brasília, chefiou o escritório da Gazeta Mercantil em Goiânia e colabora com o jornal Valor Econômico.

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Last Update: 27/06/2025