Outro dia, uma cena comum se repetiu nas periferias paulistanas: a poda de uma árvore virou símbolo do descaso. A Enel, empresa autorizada pela prefeitura a podar as áreas verdes da cidade, passou pela EMEF Humberto Dantas, na Casa Verde, Zona Norte de São Paulo. E ao fazer o que deveria ser um serviço básico, deixou um rastro de desorganização, com galhos grandes espalhados na calçada em frente à escola. O resultado: forçados a andar pelas ruas, os alunos não conseguiram sair das aulas com segurança.
Uma cena corriqueira para quem vive nas bordas da cidade, mas inaceitável para quem se recusa a naturalizar o abandono. No horário da saída escolar, crianças foram obrigadas a se desviar dos galhos, pisar na rua, se arriscar entre os carros. Era mais do que desatenção: era desprezo. A forma como esse serviço foi realizado escancarava algo que já sabemos há muito tempo: os territórios periféricos seguem sendo tratados como espaços onde tudo pode ser feito de qualquer jeito. E o que mais incomoda é que temos a nítida certeza de que, se fosse um bairro de classe média alta, isso não teria acontecido. A poda seria feita com cuidado, os resíduos recolhidos no mesmo dia, e o espaço público restabelecido com rapidez.
Diante dessa situação, eu e outras lideranças comunitárias da região decidimos agir. Mobilizamos os moradores, organizamos um grupo de conversa, reunimos fotos, registramos a situação e, juntos, redigimos um texto cobrando providências da subprefeitura da Casa Verde. Não nos calamos. E é aí que está a chave de tudo: entender que política não se faz só nos espaços institucionais, seja no Congresso Nacional, na Assembleia Legislativa ou na Câmara dos Vereadores. Política também é feita no chão da escola, na calçada da nossa rua, na decisão de não aceitar o desrespeito como parte da rotina.
Essa mobilização foi fundamental. O primeiro retorno da subprefeitura dizia que os galhos seriam retirados “em até três dias”. Três dias? Como justificar isso quando se trata de garantir segurança e mobilidade para crianças em frente a uma escola pública? Essa resposta só reafirmou a desigualdade no cuidado com os territórios da cidade. Mas não recuamos. Reforçamos a pressão, ativamos redes de apoio, conversamos com comerciantes, ampliamos a visibilidade nas redes sociais e usamos a força da nossa articulação comunitária para mostrar que estávamos atentos, organizados e exigindo respostas imediatas. E conseguimos. No dia seguinte à nossa nova rodada de cobranças, os galhos foram retirados. Um gesto simples, mas que só aconteceu porque nos mobilizamos.
Essa pequena vitória traz consigo uma reflexão muito maior: a cidade que queremos só vai existir se continuarmos operando na chave das micropolíticas. Porque enquanto muitos ainda pensam que política é só eleição e grandes decisões em gabinetes distantes, nós, que estamos nos territórios, sabemos que política também é exigir que uma criança possa sair da escola sem tropeçar em galhos largados no chão. Política é garantir que os serviços públicos sejam prestados com respeito em todos os bairros – não importa se ricos ou pobres.

A Enel, empresa autorizada pela prefeitura a podar as áreas verdes da cidade, deixou um rastro de desorganização na EMEF Humberto Dantas (Foto: Tadeu Kaçula)
As micropolíticas são ações locais, tecidas com paciência, indignação e afeto. São elas que sustentam a dignidade nas periferias e desafiam uma lógica de cidade que ainda insiste em tratar moradores de bairros populares como cidadãos de segunda classe. Mais do que isso: são elas que constroem um outro projeto de cidade – uma cidade em que todos os territórios importam, uma cidade feita a muitas mãos. Quando falo em micropolítica, dialogo diretamente com a teoria de Foucault sobra as microfísicas do poder.
Essa experiência me fortalece e reforça uma certeza: não podemos esperar que as transformações venham de cima para baixo. As grandes mudanças começam no pequeno, no cotidiano, nos gestos de cuidado coletivo. Quando a população se organiza, a resposta vem. Quando a periferia se levanta, ela transforma. Não por favor, mas por direito. E cada direito conquistado, por menor que pareça, é uma afirmação de cidadania ativa. A micropolítica se transforma em macro impacto.
A cidade precisa ser pensada com justiça territorial. Isso significa reconhecer que os bairros têm histórias diferentes de acesso a direitos – e que, justamente por isso, o poder público tem o dever de garantir políticas públicas com equidade. A periferia tem voz, tem força, tem liderança. E não aceita mais ser esquecida.
Enquanto essa equidade não for uma prática cotidiana, continuaremos operando na força das micropolíticas. Construindo redes, mobilizando vizinhos, enfrentando o descaso com coragem. Porque cada galho removido pela ação popular é um lembrete: estamos vivos, atentos, organizados. E seguiremos, um território de cada vez, construindo a cidade justa e igualitária que merecemos.