A ONU nasceu sob a promessa de ser o espaço mais universal da política internacional. Setenta e nove anos depois, o que se vê é o contrário: o anfitrião decide quem pode falar e quem deve ser silenciado. Ao barrar Mahmoud Abbas e toda a delegação palestina às vésperas da 80ª Assembleia Geral, os Estados Unidos revelaram o quanto o fórum que deveria dar voz aos povos virou instrumento de poder seletivo — aberto para uns, interditado para outros.
Na última sexta-feira (29) de agosto, o governo Donald Trump anunciou a revogação dos vistos de cerca de 80 autoridades palestinas, entre elas o presidente da Autoridade Palestina.
A decisão foi apresentada como medida de segurança. “É de interesse da nossa segurança nacional responsabilizar a OLP e a Autoridade Palestina por não cumprirem seus compromissos e por minarem as perspectivas de paz”, declarou o Departamento de Estado em comunicado.
Com a decisão, a delegação palestina está impedida de viajar a Nova York para participar do maior fórum multilateral do mundo. A medida, sem precedentes na história da ONU, ocorre justamente quando cresce a expectativa de reconhecimento internacional da Palestina e a pressão sobre o genocídio perpetradado pelo sionismo.
França, Reino Unido, Canadá, Austrália, Portugal, Malta e Bélgica anunciaram que vão reconhecer formalmente o Estado palestino ainda este mês. Trata-se de um movimento para pressionar Israel a encerrar o massacre em Gaza e na Cisjordânia: 63 mil mortos, em sua maioria civis, 150 mil feridos, uma população inteira deslocada — e a ONU declarando fome por causa da “obstrução sistemática” de ajuda humanitária por Israel.
Diante desse cenário, a presença de Abbas em Nova York teria enorme simbolismo. A Casa Branca, no entanto, agiu para sufocar esse gesto, impedindo que os palestinos celebrassem o reconhecimento europeu e denunciassem Israel em alto e bom som.
Enquanto isso, Benjamin Netanyahu, acusado de crimes de guerra e com mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional, terá acesso livre ao púlpito da ONU.
O Departamento de Estado norte-americano, liderado por Marco Rubio, justificou o veto alegando “interesses de segurança nacional”. Para Washington, a OLP e a Autoridade Palestina não cumprem compromissos, minam perspectivas de paz e praticam “lawfare” ao recorrerem a tribunais internacionais contra Israel.
Em comunicado, a pasta comandada por Rubio listou uma série de exigências para que as medidas sejam revistas. As condições impostas, no entanto, soam como chantagem. OLP e a AP teriam de:
- repudiar de forma permanente o terrorismo, incluindo os ataques de 7 de outubro;
- revisar livros e programas escolares para eliminar o que classifica como incitação;
- abandonar ações em tribunais internacionais, como o Tribunal Penal Internacional e a Corte Internacional de Justiça;
- e suspender tentativas de reconhecimento unilateral do Estado palestino.
O conjunto dessas condições mostra até onde os EUA pretendem controlar a narrativa. Não se trata apenas de vistos para uma viagem diplomática — é, na prática, um roteiro político que define como os palestinos devem se comportar para merecerem um lugar na comunidade internacional.
É uma exigência de submissão que transforma a própria existência política da Palestina em concessão de Washington.
O problema é que o Acordo da Sede, firmado entre EUA e ONU em 1947, vai na direção oposta. O documento prevê que a sede deve ser aberta a todas as delegações convidadas, inclusive de Estados não-membros, tal como a Palestina, e determina que os Estados Unidos garantam acesso irrestrito a esses representantes.
A Seção 21A é cristalina: “A sede das Nações Unidas será aberta a representantes de Estados-Membros e de Estados não-membros convidados a participar em reuniões das Nações Unidas. Os Estados Unidos deverão garantir acesso sem restrições às instalações da sede para tais representantes, bem como para a imprensa e o público credenciado pela ONU.”
Mesmo que Washington tente explorar a brecha de que a Palestina é apenas Estado observador não-membro, a decisão viola o espírito do tratado, que buscava assegurar a universalidade da ONU.
Não é a primeira vez que os EUA recorrem a esse expediente. Em 1988, o governo americano barrou Yasser Arafat de entrar em Nova York. Na ocasião, a Assembleia Geral decidiu transferir a sessão para Genebra, onde o líder palestino pôde discursar.
O precedente histórico mostra que a ONU já respondeu institucionalmente a interferências do anfitrião. Agora, porém, a aposta é em calar a Palestina em bloco, sem permitir brechas para reação imediata.
Há ainda a ameaça de que as sanções se estendam a outros países. Circulam informações de que os EUA também podem barrar diplomatas do Irã, do Sudão, do Zimbábue e até do Brasil.
Não se sabe se a medida poderia atingir diretamente o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ou apenas integrantes da delegação brasileira.
A dúvida é suficiente para gerar apreensão, já que Lula é tradicionalmente o primeiro chefe de Estado a discursar na abertura da Assembleia. A retaliação contra o Brasil se encaixaria no clima de hostilidade de Trump a Lula e na aliança do republicano com Jair Bolsonaro, acusado de tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023.
A reação internacional contra as medidas do Departamento de Estado aos palestinos foi imediata. O gabinete de Abbas denunciou a violação ao tratado de 1947. O porta-voz da ONU, Stéphane Dujarric, afirmou que é “importante” garantir a representação de todos os Estados e observadores.
Parlamentares europeus sugeriram transferir a conferência sobre a solução de dois Estados para Genebra, repetindo o gesto de 1988.
Já o chanceler israelense, Gideon Sa’ar, agradeceu a Trump pelo “passo ousado”, em mais uma evidência da convergência entre Washington e Tel Aviv. A Bélgica, por sua vez, reforçou o isolamento da dupla ao se somar ao bloco de países que reconhecerá a Palestina.
A negativa de vistos expõe a lógica perversa da política externa dos Estados Unidos para o Oriente Médio: quando não podem impedir o reconhecimento da Palestina, tratam de silenciar seus representantes.
O paradoxo é cruel. Uma autoridade palestina que renunciou há muito à luta armada, como Mahmoud Abbas, não tem o direito de falar. Já Netanyahu, símbolo de um governo que mantém Gaza em ruínas e sustenta a morte de dezenas de milhares de civis, terá o microfone aberto em Nova York.
O resultado é corrosivo para a ONU. Criada para ser universal, a organização vê-se refém da arbitrariedade de seu anfitrião. O mesmo país que aceitou sediar a ONU para evitar o fracasso da Liga das Nações agora manipula sua sede para calar povos inteiros.
Ao impedir Abbas de falar, os EUA não apenas violam um tratado de quase 80 anos. Eles reforçam a desigualdade mais antiga da política internacional: a de que alguns têm sempre o direito à palavra — e outros jamais.