Segunda parte da matéria especial que trata da primeira condenação do Estado brasileiro por sua omissão em coibir a submissão reiterada de pessoas a condições análogas à escravidão
Esta é a segunda parte de uma reportagem sobre uma longa história de violação de direitos humanos que, com o conhecimento de autoridades brasileiras, perdurou por mais de dez anos. Ela aconteceu na Fazenda Brasil Verde, em Sapucaia, no sul do Pará. Entre 1989 e 2002, mais de 300 pessoas vítimas de trabalho análogo ao escravo foram identificadas nessa fazenda. Somente entre 1997 e 2000, 128 trabalhadores foram resgatados.
Na primeira parte da matéria especial, mostramos que, em razão da omissão das autoridades brasileiras, o caso foi parar na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), que, em 2016, declarou a responsabilidade do Estado pela situação. Nessa segunda parte, nosso foco é o relato das pessoas que sofreram diretamente essas violações e de seus familiares, que vivenciaram de perto seu sofrimento.
Também vamos mostrar que, após a condenação internacional, e em parte em razão dela, o Brasil passou a encarar de outra forma o problema, embora ainda haja muito a ser feito para que a prática seja definitivamente eliminada.
“Chorei por estar livre”
Antonio Renato Barros, hoje com 63 anos, foi uma das vítimas resgatadas na fazenda nos anos 2000. Marcado por uma vida sofrida, ele relembra que trabalhou na Brasil Verde por um ano e três meses. Em nenhum momento teve a carteira de trabalho assinada e nunca recebeu um salário, apenas o valor do serviço do dia.
“Quando eu saí de lá, chorei muito por estar em liberdade, porque era uma vida muito sofrida, comendo mal, morando em um barraco de lona, todo nojento. Então eu dei graças a Deus por ser libertado”, diz Antonio.
Após sair da Brasil Verde, Antonio foi para outra fazenda e, depois, fez “bicos” em diferentes localidades. Ficou por mais de 20 anos distante da família, que chegou a dá-lo como morto. Há pouco mais de um ano, foi localizado pelos familiares. Hoje vive em Balsas, no sul do Maranhão, de onde concedeu essa entrevista à equipe do TST, com o apoio de um irmão, que cuida dele atualmente.
Amargas lembranças
Manoel Fernandes dos Santos foi outro trabalhador resgatado. Hoje, é a filha dele, Roberta Maciel Ferreira dos Santos, de 25 anos, quem relata os momentos difíceis do pai, já falecido. Para ela, dos relatos de Manoel, o que mais marcou foi a miséria e a falta de liberdade.
“Meu pai contava que, se não fossem trabalhar, iam lá no barraco onde eles estavam e tiravam toda a comida, deixavam eles com fome até o final do outro dia, que era quando eles voltavam a trabalhar para poder comer. Até se pegassem um coco verde para matar a sede eram agredidos, pois não podiam pegar nada da fazenda. Eu fico imaginando, me colocando no lugar deles, na situação de estar ali e não poder sair, não ter o direito de ser livre para ir embora daquele lugar”, afirma Roberta.
PF criou protocolo e investe em capacitação
Na Polícia Federal, o caso da Fazenda Brasil Verde é considerado emblemático. O órgão, que participou de fiscalizações e a quem foram endereçadas diversas denúncias na década de 1990 e início dos anos 2000, é citado mais de 40 vezes na sentença da Corte.
Nos últimos anos, a PF adotou uma série de medidas para aprimorar a atuação dos agentes e qualificar a investigação, mudando seu foco de atuação – antes direcionado principalmente à segurança de auditores fiscais do trabalho.
Conforme o chefe da Divisão de Repressão ao Trabalho Forçado da Polícia Federal, delegado Henrique Oliveira Santos, desde 2022, o órgão tem um roteiro de fiscalização, uma espécie de protocolo que indica o que o agente deve fazer. “O que a Corte falou foi que faltou a Polícia Federal fazer o papel de polícia judiciária, e é isso que tem mudado. Agora, o policial federal sabe o que tem que perguntar aos trabalhadores, quais são os pontos a serem abordados num flagrante, qual é o material a ser apreendido. Isso é decisivo para o inquérito, para a denúncia do Ministério Público e para a decisão do juiz”, explica.
Em 2023, os policiais federais passaram a receber capacitação para repressão ao trabalho forçado. Atualmente, a PF tem 492 inquéritos sobre o tema em andamento. Em 2022, participou de 45 operações e, em 2023, foram 123. O aumento, segundo o delegado, reflete melhorias nos registros e na capacitação de agentes.
“A repressão ao trabalho forçado é algo complexo. Sozinhas, as instituições não conseguem. A sociedade deve denunciar e o setor produtivo precisa compreender isso, para que todos ganhem: o empresário, o trabalhador e o país”, ressalta Henrique Oliveira.
Qualificação na Justiça do Trabalho e investimento em formação
Na Justiça do Trabalho, foi criado, em 2023, o Programa de Enfrentamento ao Trabalho Escravo, Tráfico de Pessoas e de Proteção ao Migrante, coordenado pelo ministro Augusto César. Ele ressalta a inserção do tema na formação inicial e continuada da magistratura e de outros agentes públicos.
“Sem que as autoridades do Judiciário e dos demais Poderes, da auditoria fiscal do trabalho e de todas as polícias conheça e reconheça o problema em toda sua extensão, não há como esperar que o Estado brasileiro esteja aparelhado para erradicar definitivamente a escravidão e o tráfico, inclusive interno, de pessoas”, afirma.
Ele lembra que o programa quer interagir com o Ministério Público e com as organizações sociais envolvidas com o tema para que a ação trabalhista seja ágil e não vise apenas à indenização aos trabalhadores escravizados, mas também a sentenças estruturantes, “que permitam mudar o que provoca a degradação humana, a ponto de gerar a escravização”.
Segundo o ministro, o constrangimento de ver o Brasil condenado por uma corte internacional pode ser evitado se os órgãos estatais forem estruturados para garantir e respeitar os direitos humanos. “Qualquer país, como estado-parte de um tratado internacional, somente é condenado por corte internacional se esse tribunal entender que ele teria faltado ao seu dever de diligência”.
Visibilidade internacional
Para a defensora pública federal Daniela Corrêa Jacques Brauner, da Coordenação de Apoio e Atuação ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos da Defensoria Pública da União (DPU), a condenação pela Corte IDH deu visibilidade internacional à prática de trabalho forçado no Brasil. “A responsabilidade atribuída pela Corte Interamericana foi um marco importante para a alteração da política brasileira de trabalho escravo e para a visibilidade para sua ocorrência”, avalia.
Outro efeito da sentença foi o entendimento acerca da escravidão contemporânea, como observa Marcos Wagner Alves, defensor regional de Direitos Humanos no Pará, que acompanha o cumprimento da sentença. “Foi um marco no combate ao trabalho escravo, por ter abordado a questão relacionando-o com o tráfico de pessoas em suas situações mais amplas, o que possibilita, até hoje, uma interpretação mais extensiva do trabalho escravo contemporâneo”.
“Ela caracteriza a permanência dessa prática não somente como o resultado da ação nefasta e inapropriada de determinados empregadores, mas credita essa situação à permanência de uma chamada discriminação histórica estrutural que prevalece no Brasil”, complementa Frei Xavier.
Lista Suja
Em abril de 2024, o Ministério do Trabalho e Emprego atualizou o cadastro de empregadores que submetem trabalhadores a condições de trabalho análogas à escravidão. O documento, conhecido como “Lista Suja”, traz 248 novos registros, o maior já registrado na história. As atividades com maior número de empregadores na lista são o trabalho doméstico (43), o cultivo de café (27), a criação de bovinos (22), a produção de carvão (16) e a construção civil (12).
Nas investigações da Polícia Federal, Minas Gerais é o estado que lidera em número de inquéritos, com 92 (quase 20% do total). Em seguida vêm São Paulo e Pará.
Por Andréa Magalhães e Natália Pianegonda/CF-Secom/TST
Foto: Francisco Meireles foi um dos escravos da Fazenda Brasil-Ele relatou ao Repórter Brasil: “Os fiscais (funcionários da fazenda) vigiavam a gente o tempo todo, sempre armados. Não deixavam ninguém sair”, diz sobre “as memórias feias” guardadas. “Para acordar a gente, o fiscal cutucava nosso pé com um tição de fogo. Não tem como esquecer o que vivi lá.”