Vitória é uma ficção que guarda em si muitas histórias reais – algumas alegres, outras tristes. O longa-metragem, em cartaz nos cinemas desde a quinta-feira 13, tem como chamariz a presença de Fernanda Montenegro, que dá vida à personagem principal. A atriz, que está com 95 anos, tinha 93 quando rodou o longa-metragem dirigido por Andrucha Waddington, marido de Fernanda Torres.

Sua presença sempre foi o coração do filme. Mas o justificado frisson em torno das duas Fernandas por conta da indicação de mãe e filha ao Globo de Ouro e ao Oscar, com duas décadas de diferença, fez com que o interesse pelo projeto crescesse.

E há outro elos a unir Vitória e Ainda Estou Aqui. A carioca Conspiração e a plataforma GloboPlay, coprodutores do primeiro título brasileiro a ganhar um Oscar, são os produtores de Vitória – rodado cerca de seis meses depois do filme de Walter Salles. Também a distribuidora de ambos é a mesma: a Sony Pictures.

O interesse dos programadores de cinema por Vitória já era grande, dado o nome de Fernanda Montenegro e também o bom desempenho dos filmes brasileiros nas bilheterias este ano. Com a estatueta, o interesse cresceu ainda mais.

Baseado numa história real, narrada no livro Dona Vitória Joana da Paz, de Fábio Gusmão, o filme, apesar de parecer, neste momento, o projeto certo na hora certa, teve um caminho tortuoso.

O interesse da Conspiração pela personagem nasceu quando Gusmão publicou no jornal Extra, em 2005, uma reportagem sobre a aposentada de 80 anos que filmou a rotina de traficantes e policiais corruptos, na Ladeira dos Tabajaras, na Zona Sul do Rio, e acabou por levar a polícia a desmantelar a quadrilha.

Ao ler a história, Waddington quis transformá-la em filme. Não demorou, porém, para que seu sócio Breno Silveira, diretor de Dois Filhos de ­Francisco (2005) e Gonzaga: De Pai Para Filho (2012), lhe falasse do desejo de fazer um longa-metragem sobre Dona Vitória. E foi com ele que o projeto ficou.

Da ideia à estreia do filme, 20 anos se passaram. No meio do caminho, dois acontecimentos impactaram de forma profunda o projeto.

Dona Vitória Joana da Paz. Fábio Gusmão. Editorial Planeta (224 págs., 69,90 reais) – Compre na Amazon

Em maio de 2022, logo após o início das filmagens em Vicência, na Zona da Mata pernambucana, Silveira sofreu um infarto e morreu, aos 58 anos. Fernanda Montenegro estava no Rio, se recuperando de uma queda, e o diretor tinha resolvido começar por cenas das quais ela não participaria.

Quando Waddington assumiu o filme, toda a parte pernambucana, que remeteria ao passado de Vitória, foi tirada do roteiro. Vitória, uma mulher negra de Alagoas, tornou-se, na ficção, uma mulher branca de Minas Gerais.

As filmagens terminaram no fim de 2022. Em fevereiro de 2023, O Globo noticiou: Morre Dona Vitória, nasce Joana da Paz: repórter revela identidade da idosa que documentou o tráfico de Copacabana.

Gusmão – vivido pelo ator Alan Rocha, que também faz o papel de um jornalista em Ainda Estou Aqui – contava, no texto, que o sonho de Joana era ter sua identidade revelada. Mas isso só foi possível após sua morte, aos 97 anos. Ela morava em Salvador desde os 80, quando, no relato de Gusmão, “deixou o imóvel onde viveu por 36 anos para ingressar no programa de proteção a testemunhas”. Foram 17 anos vivendo escondida.

Assim como a memória e o tempo nos permitem organizar e dar novos sentidos às grandes experiências e traumas, o cinema se permite condensar uma vida em duas horas. E, para isso, essa vida tem de ser reinventada. Se, após a operação policial de 2005, Joana virou Vitória, ao saltar para a ficção, ela virou Nina.

E Nina, que parcela em dez vezes a câmera com a qual filmará, pela persiana entreaberta, a boca do tráfico, é efetivamente a Joana que gravou o crime para ver-se livre dele. Mas ela é também a senhora rebatizada como Vitória. E é a Fernanda que comove não apenas pelo talento, mas pelos seus 90 e poucos anos projetados na tela.

Na entrevista concedida para o material de divulgação, a atriz afirma: “Na velhice, a solidão é inarredável. A vida vai levando você à solidão. Com a idade você vai ouvindo menos, vendo menos, se levanta com menos agilidade e as juntas começam a secar. Isso tudo é uma solidão também. Mas o filme não trata ­Vitória como uma sofrida, demagógica e melodramática. Pelo contrário, é uma mulher afetuosa e destemida”.

Fernanda descreve de forma precisa essa heroína que nos arrebata, ainda que o roteiro tenha algumas fragilidades na forma como a desenvolveu.

Uma delas reside nos personagens secundários criados como apoio para a moldagem da personalidade de Nina, como Marcinho (Thawan Lucas), menino da comunidade, e Bibiana (Linn da ­Quebrada), sua vizinha. Eles remetem mais a tipos “sociais” do que a pessoas reais.

Impressionam, por outro lado, os detalhes do apartamento, que é um elemento central da trama. A riqueza dramática desse espaço – que deve ser em parte creditada à direção de arte de Cláudio Amaral Peixoto – é fundamental para a força do universo construído.

Waddington, diretor experiente em todos os formatos audiovisuais, e que dirigira Fernanda em Casa de Areia (2005), no qual mãe e filha contracenam, move-se com eficácia e intensidade por essa casa onde se desenrola mais da metade do filme e de onde se avizinha todo um Brasil. •

Publicado na edição n° 1353 de CartaCapital, em 19 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O Brasil visto através da janela’

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Last Update: 13/03/2025