Em uma eleição acirrada, mas sem contestações, a Frente Ampla retomou o poder, após um breve interregno no mandato do liberal Luis Lacalle Pou, e terá força no Parlamento para implementar a agenda vitoriosa nas urnas. No marco dos 40 anos do fim da ditadura, uma das mais sangrentas do Cone Sul, a tradição combativa da esquerda ecoou mais forte no domingo 24. Numa disputa presidencial marcada pelo equilíbrio e pela incerteza sobre o resultado até a abertura das urnas, 49% do eleitorado escolheu Yamandú Orsi, pupilo do ex-presidente Pepe Mujica, contra 45% de apoio a Álvaro Delgado, indicado por Lacalle Pou.

Aposentado, 90 anos, José Ramón não se deixou vencer pelo cansaço. Na sexta-feira 22, vendia bandeiras da Frente Ampla, costuradas por sua filha, na Avenida Itália, uma das principais de Montevidéu. A capital, fundada há exatos 300 anos, foi fundamental para o triunfo do campo progressista ao estabelecer uma diferença favorável de 150 mil votos sobre o bloco conservador. A frente governa a prefeitura desde 1990 de forma ininterrupta.

Cerca de três horas depois do encerramento dos centros de votação, o tribunal eleitoral divulgou os números que delineavam o êxito da FA, resultado imediatamente reconhecido pelos adversários. “A cultura política de nosso país é do diálogo e da capacidade de estabelecer acordos comuns. Todos temos na família alguém identificado com uma ou outra força partidária e sabemos que nem por isso são criminosos ou estúpidos. Existe respeito e isso se traduziu na campanha”, afirma a médica Ivonne Klingler, clandestina por nove anos durante a ditadura.

Com a experiência de ter acompanhado processos eleitorais em sua terra natal e no Brasil, em Florianópolis, onde morou, o cozinheiro argentino Fernando Berzoni compara os embates dessas sociedades em relação à moderação dos vizinhos uruguaios. “Aqui, você não ouve dizer que, se a esquerda governar o país, vai virar uma Venezuela, ou que o comunismo vai dominar, ainda que os comunistas façam parte da Frente Ampla. É um patamar elevado de crítica e consciência, e isso se deve à educação pública”, acredita. No restaurante onde Berzoni trabalha, na Cidade Velha, um prato não sai por menos do equivalente a 50 reais.

Em Montevidéu, como no restante do país, o alto custo de vida foi uma das razões para a derrota do governismo. Apesar do bom desempenho no crescimento do PIB, ganhos reais de salário e estabilidade da moeda, a sensação generalizada entre os trabalhadores e empresários é de que está cada dia mais difícil driblar a realidade que coloca o país na condição de o mais caro da América Latina, com um crescente distanciamento entre os mais ricos e os mais pobres. “Há alguns anos, éramos 3 mil motoristas trabalhando nas plataformas digitais, agora esse número caiu pela metade, pois é muito difícil manter um automóvel com o preço cobrado pelo combustível. Há cinco anos, votei no atual presidente Lacalle Pou, do Partido Nacional, mas agora escolhi Yamandú. Vou trocando”, afirma o motorista Pablo Daniel.

A gasolina passa do equivalente a 10 reais o litro, o transporte público a 8 e o preço dos alimentos – a banana chega a custar cerca de 15 reais o quilo – dão a medida dos desafios do cotidiano. “Muito dessa situação se deve a cinco grandes crises que enfrentamos: duas secas, a guerra Rússia vs. Ucrânia, a desvalorização cambial do peso argentino e a pandemia. Merecíamos continuar, mas dormimos apenas com um sorriso menor”, resignou-se Flavio Arguindegui, do Partido Colorado, que apoiava os nacionalistas.

Yamandú Orsi é pupilo de Pepe Mujica, bem presente na campanha

Na primeira manifestação após a vitória, Orsi conclamou a unidade nacional diante de uma multidão que reunia um encontro de gerações e o aguardava para festejar na Rambla, um dos lugares mais icônicos da capital. Na segunda-feira 25, o eleito foi à chácara de Pepe Mujica, que saiu da reclusão para se dedicar à campanha do aliado. No dia seguinte, reuniu-se com Lacalle Pou, que o cumprimentou pelo triunfo, para dar início ao processo de transição. “Esse zelo pela institucionalidade e pela democracia se deve a consensos como preservar a educação e a saúde públicas. Assim, mesmo quando a direita assume, ela não sai privatizando tudo. Esse equilíbrio preserva a estabilidade e faz com que as mudanças sejam menos acentuadas, independentemente de quem governe. Também merece destaque o histórico de unidade do polo progressista uruguaio, assentado desde 1971”, analisa o sociólogo Marco Terrugi.

A solidez da esquerda reflete-se ainda no Parlamento, com maioria no Senado e uma bancada fortalecida na Câmara, o que dá uma boa margem ao futuro presidente para aprovar a agenda social tradicional da Frente e avançar em ideias novas, entre elas a criação do Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos. “Nossa prioridade será diminuir a pobreza na primeira infância, que atinge 20% das crianças, por meio de um conjunto de políticas, e encontrar soluções para o enfrentamento ao crime organizado”, pontua a senadora Liliam Kechichian.

A mudança de poder no Uruguai deve levar a uma aproximação maior com o Brasil, dada a afinidade ideológica entre os governantes, promovendo a troca de tecnologias, experiências e ações integradas na área climática, sugere o deputado estadual Matheus Gomes, do PSOL do Rio Grande do Sul, com quem o Uruguai faz fronteira. O parlamentar esteve no país para observar a eleição e conversar com lideranças locais. “Podemos aprender com a forma de organização da esquerda por aqui. Depois da derrota em 2019, a FA fez uma autocrítica. A partir daí colocaram a meta de organizar 500 comitês de base e realizaram mais de 1,8 mil reuniões. Fizeram uma campanha militante, enraizada nos bairros, diferente de campanhas profissionais que temos visto no Brasil. Não me parece que foram ao centro para ganhar, eles foram às bases e venceram um governo até bem avaliado, mas superado por uma política correta e consistente mobilização. É um triunfo incrível para a região”, sintetiza.

Publicado na edição n° 1339 de CartaCapital, em 04 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Nos braços do povo’

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Last Update: 28/11/2024