Solo estéril pela seca, ossos de animais e um horizonte sem sombra e sem esperança. As fotos do Semiárido nordestino marcam o imaginário brasileiro, mas não retratam mais com absoluta fidelidade a vida na região. O acesso à água a partir da instalação de cisternas e o melhor aproveitamento da grande biodiversidade da Caatinga diminuíram o fardo cotidiano dos sertanejos. Ainda assim, a falta de infraestrutura e de políticas públicas atravessa os séculos. Em algumas áreas, o acesso à energia é impossível ou precário, como na comunidade de Brejo Dois Irmãos, no município baiano de Pilão Arcado, distante em torno de 1,4 mil quilômetros de Salvador. A população de pouco mais de 3 mil habitantes não tem acesso à luz convencional, conta apenas com um painel solar de 150 watts por residência, que mal segura quatro pontos acesos ou sustenta duas horas de televisão.

Para modificar essa realidade, a Articulação do Semiárido, formada por 3 mil entidades filiadas, acaba de lançar o Programa Um Milhão de Tetos Solares, cujo objetivo é implantar um modelo de geração de energia solar, individual e comunitária, e a criação de fábricas-escolas para a produção de equipamentos utilizados pela indústria renovável. O projeto propõe-se a atender os nove estados do Nordeste e o norte de Minas Gerais, com um investimento inicial de 78,9 milhões de reais. A primeira fase do programa terá início em 2025 e visa atender 3 mil famílias rurais de 60 municípios, além de construir dez fábricas-escolas e capacitar 200 jovens eletricistas.

“A energia no Semiárido ainda está concentrada nas grandes propriedades, assim como era até pouco tempo a água. Além disso, por mais contraditório que pareça diante da cobiça das grandes empresas e multinacionais de energia renovável para instalação de usinas fotovoltaicas ou parques eólicos na região, algumas comunidades ainda não têm sequer a energia convencional, o que torna o programa estratégico e fundamental para as famílias que vivem da agroecologia”, afirma Giovanne Xenofonte, um dos coordenadores da ASA. Mais de 1,5 milhão de famílias, destaca, dependem da agricultura familiar. “Com uma energia sustentável mais barata, as famílias terão condições de bombear água na produção e tornar o Semiárido brasileiro a região mais produtiva em termos de alimentos do planeta. Sem falar que o Semiárido vem sofrendo com o as mudanças climáticas e essa energia também pode auxiliar nos processos de recuperação de áreas degradadas e na produção de mudas.”

A ideia é instalar entre oito e dez placas fotovoltaicas por residência, com capacidade de gerar até 500 quilowatts de energia. Segundo dados do setor elétrico, a média nacional de consumo de energia por família é de mais ou menos 150 quilowatts por mês. A meta da ASA é que cada família utilize os 150 quilowatts para o uso doméstico e a mesma cota para a irrigação, produção e processamento de alimentos. O excedente, em torno de 200 quilowatts, seria comercializado no mercado livre de energia para gerar renda às famílias. “Com um sistema de bombeamento de água adequado e energia a baixo custo, teremos um avanço enorme na produção de alimentos e ainda estaremos fazendo o enfrentamento às grandes empresas que estão se instalando na região e estimulando as famílias a saírem dos seus territórios”, ressalta Xenofonte.

O programa inspira-se na construção de cisternas na região

Tornou-se cada vez mais comum empresas alugarem áreas voltadas para agroecologia, desapropriando famílias e comprometendo a produção de alimentos, para instalação dos equipamentos de energia renovável. “Acabam levando toda riqueza que é gerada e os moradores ficam só com o ônus. Há uma descaracterização da agricultura familiar com a chegada desses grandes projetos e a gente acha que precisa fazer o contrário: oferecer energia barata para que as famílias se reafirmem como agricultoras e produtoras de alimentos.”

Para o apicultor Cosme de Sousa, morador de Brejo Dois Irmãos, a oferta de energia na comunidade vai transformar a vida dos moradores, pois hoje eles são privados de usar equipamentos eletrônicos básicos, como geladeira e ventilador, isso em meio ao calor excessivo do Semiárido. “Nós, povo brejeiro, nos sentimos esquecidos, usurpados do direito de ter uma energia de qualidade. No trabalho, o impacto é muito significativo, porque não podemos usar certas tecnologias, como computadores que temos nas escolas e não usamos por não termos energia suficiente. Sem dúvida, a energia solar mudaria a vida da nossa comunidade.”

Bem diferente da realidade de Brejo Dois Irmão, em Monte Santo, outro município do Semiárido baiano, há uma experiência bem-sucedida de energia solar voltada para os moradores. “Antes da chegada dessa opção na nossa região, a gente não podia nem utilizar o poço para bombear água para irrigação, porque a conta de energia era muito cara e a produção não era suficiente para pagar. Agora, com o custo mais barato, a gente consegue produzir um quiabo, um milhozinho e a folhagem para os animais. Mudou muito a região. E o sol está aí, de graça, falta a gente aproveitar melhor esse potencial e falta, principalmente, investimento dos governantes. É preciso uma política voltada para o pequeno agricultor”, diz Roberto Reis, técnico de instalação de poços artesianos e morador de Monte Santo.

Para viabilizar a execução do Um Milhão de Tetos Solares, a ASA iniciou o processo para captação de recursos. Apresentou o projeto à Fundação Banco do Brasil, ao BNDES e ao governo federal, por meio do Ministério de Desenvolvimento Social e da Sudene. “Enviamos uma minuta do projeto para os nossos parceiros e estamos aguardando o retorno, que deve acontecer até o fim do ano”, torce Xenofonte. •

Publicado na edição n° 1339 de CartaCapital, em 04 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O sol a favor’

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Last Update: 28/11/2024