No século XVI, mais precisamente em 1577, Étienne de La Boétie publicou seu famoso, e ainda atualíssimo, Discurso da Servidão Voluntária. No ensaio, ele se pergunta por qual razão todo um povo se submete a um governante que o prejudica. Se o povo é mais numeroso do que a autoridade, incluindo todo seu exército, deve haver um desejo de servidão que move as pessoas a abrir mão de sua liberdade – até mesmo a mais valiosa delas, a liberdade de expressão – pelo “conforto” da servidão.
La Boétie responde à própria pergunta dizendo que os homens não lutam contra a tirania porque se habituaram a ela. Mais que isso, os servos voluntários buscam a proteção que o tirano oferece a quem lhe é fiel. Seu discurso ainda é necessário, porque a sociedade em geral, e em particular no no Brasil, flerta assiduamente com o autoritarismo, desde que ele não se volte, claro, contra os próprios interesseiros.
Muita gente indignou-se, por exemplo, com as investigações da Comissão Nacional da Verdade, que visava esclarecer os crimes cometidos pela ditadura (1964–1985). A violência da polícia militarizada é um legado desse período, como apontei na coluna “Inimigo interno”, publicada na edição 1274, em 30 de agosto de 2023.
À época, muitos se voltaram contra os integrantes da Comissão, da qual tive a honra de participar. Exigiam que investigássemos o “outro lado”, acreditando – por ignorância ou má-fé – que um regime ditatorial simplesmente reflete a luta entre dois lados em igualdade de condições.
Para tentar compreender a leniência de parte dos brasileiros aos crimes da ditadura, retorno no tempo para imaginar uma aliança entre o pensamento de La Boétie e o de Sigmund Freud. Refiro-me especificamente a um de seus textos mais contundentes e, aparentemente, premonitório, o Psicologia das Massas e Análise do Eu, escrito entre 1920–1923, pouco uma década antes da ascensão de Hitler ao poder.
Na obra, Freud começa pela constatação de que o ser humano é um “animal social”. A partir daí, arrisca uma especulação que deve muito à sua escuta clínica, mas que pretende debruçar-se sobre o que hoje chamamos, não sei se adequadamente, de “psicologia social”. Freud, por sinal, usa outro termo, refere-se a uma “psicologia coletiva”. O criador da psicanálise considera, nesse ensaio, que o indivíduo tende a filiar-se (quando não tem um pertencimento de nascença) a “uma tribo, um povo, uma casta, uma classe social ou uma instituição”, constituindo o que ele chama de massa. O texto é longo e impossível de resumir neste espaço, mas destaco duas características da massa, segundo Freud:
1. A massa protege o indivíduo de lidar com as consequências de seus atos. Ao participar de um grupo, as pessoas sentem-se menos responsáveis eticamente pelo que fazem. Podem linchar, ferir, torturar, sem escrúpulos, incitados pela embriaguez de pertencer à massa, assim como – acrescento eu – podem dançar na rua, provocar os transeuntes, divertir-se de todas as formas imagináveis, protegidos pelo pertencimento à multidão. Só que Freud não conheceu o Carnaval brasileiro. Não se refere ao fator erótico da psicologia das massas, e sim ao fator tanático.
2. “Pelo simples fato de integrar uma multidão, o homem desce vários escalões na escala da civilização. Isolado, é um indivíduo culto (…) na multidão, é um bárbaro”, observa Freud. A massa tem o efeito de afrouxar a censura do superego.
O leitor pode imaginar, também, que para o rigoroso século XIX, no qual Freud passou a maior parte da vida, “afrouxar a censura do superego” levava a consequências muito mais modestas do que vemos hoje. Isso pode ser bom quando atinge nossas “paixões alegres”, mas se torna perigoso quanto atiça as tristes ou furiosas. Vale observar que, embora a fúria pareça uma paixão cheia de vida, ela é mais próxima de Tânatos do que de Eros.
Volto ao nosso tema: o das multidões virtuais. Não seria o caso de criar alguma regulamentação para a “terra de ninguém” das redes sociais ou, como prefiro dizer, antissociais? Protegidos pelo anonimato, muitos usuários se vêm tentados a, nas palavras de Freud, “descer vários escalões na escala da civilização”. Humilham, caluniam, ameaçam, distorcem o que o outro diz etc. “Não acredito em pessoas, acredito em dispositivos”, disse certa vez Lacan. Acho que ele tem razão. Longe da horda linchadora que frequenta as redes, a maioria das pessoas não teria interesse, coragem ou mesmo imaginação para inventar tantas formas de bullying.
P.S.: Devo dizer que escrevi esta coluna motivada por um “linchamento” dirigido a mim por ter criticado as pautas identitárias. Mas este será assunto para uma próxima coluna. Ou talvez não. •
Publicado na edição n° 1349 de CartaCapital, em 19 de fevereiro de 2025.