Prezado leitor, a coluna desta semana é uma homenagem ao que o Brasil tem de melhor: sua música popular, a MPB. Assim como o ­Obelix dos quadrinhos de Hergé, tive a sorte de cair, ao nascer, não em uma tina com poção mágica, mas em um monumental recipiente onde todos os brasileiros cabem: o caldeirão do samba.

Nasci em Campinas, onde morava minha avó materna e vários outros integrantes da grande família Bicalho – o sobrenome Kehl vem do lado paterno. Naquela cidade interiorana, onde todos se conheciam, meus tios chegaram a fazer uma serenata no jardim da maternidade para homenagear minha chegada. Devem ter sido bons músicos, pois não foram expulsos. Gosto de imaginar que, na primeira hora de vida, comecei a assimilar, junto ao leite materno, o ritmo e as melodias que até hoje embalam minha vida.

Estou casada com o samba. Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, como se costuma dizer ao pé do altar. Sempre que minha mãe e meus tios se reuniam em Campinas – para aborrecimento do meu pai, que achava tudo aquilo muito chato – o sarau era garantido.

Passado o Carnaval, talvez a festa mais genuinamente brasileira, quero propor um desafio aos leitores, especialmente àqueles que compartilham a mesma afinidade pela MPB. O jogo é simples: escrevo aqui, ao sabor da memória, trechos curtos dos sambas que aprendi, sem esforço, ao longo da minha vida. Embora sejam de músicas diferentes, tento manter, na escolha das passagens, algo parecido com uma narrativa. Cabe ao leitor descobrir, sem consultar o Google, quem são os compositores de cada estrofe:

Silêncio, por favor
Enquanto esqueço um pouco
a dor no peito
Não diga nada
sobre meus defeitos
Eu não me lembro mais
quem me deixou assim

Na terra em que o mar não bate
Não bate o meu coração
O mar onde o céu flutua
Onde morrem o sol e a lua
E acaba o caminho do chão

Não, não sou eu quem vai ficar no porto chorando, não
Lamentando o eterno movimento
Movimento dos barcos, movimento

Noite chegou outra vez, de novo na esquina
Os homens estão, todos se acham mortais
Dividem a noite, a lua e até a solidão

Ainda hoje vou-me embora pra Candeias
Ainda hoje, meu amor, eu vou voltar
Da terra nova nem saudade vou levando
Pelo contrário, pouca história pra contar

Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga, do roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigos

Os boias-frias quando tomam umas biritas
Espantando a tristeza
Sonham com bife à cavalo, batata frita
E a sobremesa
É goiabada cascão, com muito queijo
Depois café, cigarro e um beijo
De uma mulata chamada Leonor ou Dagmar

Mas… O dia vai chegar
Que o mundo vai saber
Não se vive sem se dar
Quem trabalha é que tem
Direito de viver
Pois a terra é de ninguém

Quem me vê sempre parado
Distante, garante que eu não sei sambar
Tô me guardando pra quando
o carnaval chegar
Eu tô só vendo, sabendo
Sentindo, escutando e não posso falar
Tô me guardando pra quando
o carnaval chegar

Para terminar, uma divagação. Quando o publicitário Washington Olivetto foi libertado de um sequestro em 2002, após 53 dias em cativeiro, pessoas próximas – ou jornalistas, não me lembro com exatidão – perguntaram-lhe como foi possível suportar aquele suplício: o isolamento, a incerteza sobre o seu destino e, sobretudo, o tédio. Olivetto respondeu que, mentalmente, recitava poemas de Homero, Virgílio, Eurípedes, Camões…

Sei de cor alguns poemas de autores brasileiros. O mais longo é Passagem da Noite, de Carlos Drummond de Andrade, com seus 40 versos em quatro estrofes. Também decorei alguns de Manuel Bandeira, como Irene. Mas não são esses poucos poemas decorados que me impediriam de enlouquecer já no terceiro dia de um hipotético cativeiro. O samba me ajudaria a suportar a barra, e gosto de pensar que tenho repertório suficiente para mais de 50 dias, sem me repetir. •

Publicado na edição n° 1353 de CartaCapital, em 19 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Meu Brasil brasileiro’

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Last Update: 13/03/2025