Brilha o sol da justiça
A justiça que se começa a fazer é um passo imprescindível para a construção de uma democracia menos frágil
Por Luis Felipe Miguel, no substack Amanhã não existe ainda
1.
Eu ia escrever sobre Luiz Fux, mas desisti. O voto dele, intelectualmente desonesto e juridicamente anêmico, já foi destrinchado por gente mais gabaritada do que eu. A jogada dele não está toda desvelada – o que ele está ganhando ou deixando de perder com essa guinada? –, mas sua lógica é óbvia. Os adjetivos que eu tinha reservado para qualificá-lo também já estão na mente de todos vocês.
Carmen Lúcia e depois Cristiano Zanin lavaram nossa alma. Quanto a Luiz Fux, vamos deixá-lo repousar na lata de lixo da história, para onde se transferiu antes mesmo da aposentadoria.
Jair Bolsonaro está condenado, junto com seus generais. Brilha neste instante no céu da pátria, em raios fúlgidos, o sol da justiça.
Eu confesso que, por muito tempo, tive pouca esperança de ver Jair Bolsonaro condenado. Tudo andou de forma tão lenta por tanto tempo e somos um país tão viciado na impunidade. Parecia, mesmo, que a inelegibilidade era tudo o que se iria alcançar.
Falei em impunidade, mas, é claro, ela é seletiva. Impunidade para generais, para grandes empresários, para políticos de direita. Dilma Rousseff foi retirada do cargo com base em um pretexto, as “pedaladas fiscais”, que poderia justificar, quando muito, uma reprimenda do Tribunal de Contas.
Já Jair Bolsonaro fez gato e sapato durante seu mandato, cometeu crimes de responsabilidade dia sim e dia também. Em dado momento, afastá-lo do cargo era uma urgência nacional: era um passo necessário para salvar milhares de vidas, interrompendo seu boicote às medidas de saúde pública durante a pandemia.
Ainda assim, ele ficou na presidência até o final do mandato – só fugiu na véspera da transmissão do cargo, para os Estados Unidos, por vontade própria. Os limites que, segundo se dizia, ele não poderia ultrapassar se mostravam incrivelmente elásticos; a cada novo atentado contra a Constituição, havia um jantar para “harmonizar os poderes” e se punham panos quentes.
A condução criminosa do país durante a pandemia é o que mais dói. Como não lembrar dos nossos 700 mil mortos, das centenas de covas preparadas nos cemitérios para receber cadáveres que não paravam de chegar, dos hospitais sem leitos, sem suprimentos, com médicos e enfermeiros estafados – e o presidente da República trabalhando contra o isolamento, contra a vacina, promovendo medicamentos sabidamente ineficazes, falando de “gripezinha”, falando “não sou coveiro”, falando “todos nós vamos morrer um dia”, debochando daqueles que sufocavam sem oxigênio por causa da incúria de seu próprio governo?
E a política de “passar a boiada” nas questões ambientais. E os ataques à ciência. E a criminalização dos professores e da educação. E a perseguição ao funcionalismo público. E o desmonte de todas as políticas de direitos humanos. E a subserviência ao imperialismo estadunidense. E os esforços para sufocar a imprensa. E o uso permanente da mentira e da intimidação. E a misoginia, o racismo e a homofobia delirantes. E a apologia da violência contra os mais fracos. E o aparelhamento do Estado em favor do próprio clã. E as maracutaias com joias e relógios. E também, claro, as tentativas de golpe, antes, durante e depois das eleições de 2022.
2.
Mil condenações seriam pouco para o que Jair Bolsonaro fez de mal para o povo brasileiro. Levando junto não só Augusto Heleno e Braga Netto, mas também Paulo Guedes, Hamilton Mourão, Ricardo Salles, Damares Alves, Weintraub e tantos outros. Todos criminosos.
Se houve algum governante que mereceu o impeachment, na história do Brasil ou mesmo do mundo, ele se chamava Jair Messias Bolsonaro. Mas cumpriu seu mandato até o fim, sem sobressaltos.
E depois do 8 de janeiro, quando se estava com a faca e o queijo na mão, aquele marasmo. O governo Lula tendendo, como sempre, a contemporizar, o José Múcio no Ministério da Defesa botando panos quentes, nossa incapacidade coletiva de manter a ofensiva, permitindo que prosperasse a narrativa de que a “festa da Selma” não passou de um agito muito louco, é verdade, mas no final das contas inofensivo, de cabeleireiras entediadas.
O Supremo começando os julgamentos pela arraia miúda, pelos mentecaptos que invadiram a Praça dos Três Poderes, e andando em ritmo de lesma na responsabilização dos mandantes. Jair Bolsonaro e seus tarcísios debochando da justiça sem nenhuma reação mais contundente. Sim, parecia que a gente ia ficar marcando passo.
3.
Por isso, é enorme a alegria ao ver que Jair já está com o bilhete comprado para a cadeia. Talvez não para a Papuda, embora a lei exigisse que sim, na qualidade de líder de organização criminosa armada, mas ao menos para uma cela na Polícia Federal. Nunca fui fã de Alexandre de Moraes, minha memória é boa demais para isso. Mas devo aplaudir sua determinação neste momento histórico, o fato de que ele pensou: esses sujeitos precisam ser punidos.
A vontade de vingança é um sentimento humano. Nenhum de nós está imune a ela, nem adianta fingir. Quem perdeu amigos e parentes ou quem quase perdeu a própria vida porque o presidente era um cúmplice do coronavírus – não é natural querer vê-lo pagado pelo que fez? Ou mesmo quem se sente com o compromisso de honrar todas aquelas brasileiras e todos aqueles brasileiros que se sacrificaram, por vezes sacrificaram a própria vida, para que não vivêssemos sob uma ditadura.
Rubens Paiva e Frei Tito, Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho, Dilma Rousseff e Elza Lobo, Amelinha Teles e Honestino Guimarães, Davi Capistrano e Ieda Delgado, tanta gente mais: nós devemos a cada um deles a defesa do que temos de democracia.
A vontade de justiça pode ser lida como uma manifestação “civilizada” do desejo de vingança, que fala não apenas de cada um de nós, mas de nossa vida em comum. Justiça é o que estamos começando a ter com este julgamento, apesar de tudo, de atropelos no processo, de algumas ausências no banco dos réus, mesmo da falta de vergonha na cara de Luiz Fux.
Nem sempre justiça e conveniência política caminham juntos. Às vezes, somos forçados a reduzir nossa pressão por justiça diante da força das circunstâncias. Mas, no caso, temos um casamento perfeito.
É preciso punir Jair Bolsonaro e seus cúmplices porque eles merecem, mas também porque nossa única chance de construir uma democracia menos instável depende de traçar uma linha clara, de demonstrar que atentar contra essa democracia carrega consequências, de fazer com que seus inimigos pensem duas vezes antes de tramar novas intentonas.
É a nossa única chance, repito. Pode ser que, punindo a quadrilha de Jair Bolsonaro, tudo ainda venha a dar errado. Sim, são muitos fatores nesse jogo. Mas se eles saíssem impunes, aí estaríamos dando carta branca para qualquer golpista interessado em instaurar uma ditadura, um recado claro que pode se resumir em: tentem até conseguir.
A decisão da primeira turma do Supremo é um marco em nossa história. Que os recursos da defesa sejam julgados com celeridade, com o respeito ao direito dos réus que deve caracterizar a democracia, e que as penas sejam logo colocadas em execução.
*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica). [https://amzn.to/45NRwS2].