“Ele não viu que eu estava de uniforme, mãe?” Essa foi uma das últimas palavras de Marcos Vinícius da Silva, assassinado em uma desastrosa operação policial no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, em 20 de junho de 2018. Depois de sair da escola, ele caminhava pela comunidade, a caminho de casa, quando cruzou com um blindado da Polícia Militar. Atingido por um disparo de fuzil, foi levado às pressas para uma Unidade de Pronto Atendimento e, na sequência, transferido ao Hospital Getúlio Vargas, onde recebeu seis bolsas de sangue, mas não resistiu ao grave ferimento e morreu. Tinha apenas 14 anos e era estudante da 8ª série do ensino fundamental no Ciep Operário Vicente Mariano.

Bruna da Silva ainda guarda o uniforme escolar usado pelo filho no dia da tragédia. Chegou a exibir a camiseta ensanguentada em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, diante do olhar envergonhado dos parlamentares da Bancada da Bala. Nascida na Maré, ela trabalhava como diarista em Copacabana quando o filho foi morto. Foi ela quem ouviu o perplexo desabafo do garoto ainda na UPA, enquanto Marcus Vinícius tentava entender por que havia sido confundido com um criminoso. A mãe segue na luta por justiça, mas tem pouca esperança de que os responsáveis pelo crime sejam punidos. “Quem atirou no meu filho foi um policial civil. E quem investiga o crime é a Delegacia de Homicídios da Polícia Civil. Eles não têm interesse em concluir o caso”, denuncia.

Na tentativa de sensibilizar as autoridades sobre as consequências das agressivas incursões policiais nos morros cariocas, a ONG Redes da Maré publicou recentemente o livro Eu Devia Estar na Escola (Editora Caixote). A obra reúne desenhos e cartas de crianças que vivenciam a rotina de violência nas 16 favelas do Complexo da Maré, onde vivem cerca de 130 mil pessoas. “Mais de 1,5 mil alunos de escolas da região deram suas contribuições ao projeto. Esse material foi produzido em um momento crucial, quando havia a possibilidade de o Poder Público retirar as regras que regulamentavam as operações policiais nas comunidades do Rio, o que as tornariam ainda mais perigosas para a população”, afirma a editora Isabel ­Malzoni, uma das responsáveis pela pesquisa e curadoria do livro, ao lado de Adelaide Rezende e Ananda Luz. “Se mesmo com essa regulamentação, a população estava sujeita a violações de direitos frequentes, imagine o que aconteceria sem ela.”

A estratégia já foi adotada no passado para sensibilizar magistrados

O governador Wilson Witzel havia prometido, durante a campanha eleitoral de 2018, garantir autonomia total aos policiais no combate ao narcotráfico. Logo após ser eleito, embalado pela onda bolsonarista, deixou claro qual seria a diretriz de sua política de segurança: “A polícia vai mirar na cabecinha e… fogo”. No comando do Palácio da Guanabara, Witzel propôs a revogação da Ação Civil Pública da Maré, apresentada em 2016 pela Defensoria Pública do Estado e pela ONG, que estabelecia diretrizes para reduzir a letalidade policial. Em junho de 2019, a juíza Regina Lúcia de Almeida Castro, da 6ª Vara da Fazenda Pública da Capital, acatou a sugestão do governador e arquivou a ação.

A partir de então, a Redes da Maré começou a coletar depoimentos de crianças para sensibilizar a juíza e, posteriormente, os desembargadores do Tribunal de Justiça. As cartas lotaram as caixas de correspondência dos magistrados. Ao cabo, o TJ decidiu restabelecer as regras previstas na Ação Civil Pública. Além disso, durante a pandemia de Covid–19, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, determinou uma série de restrições para as operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro, com o objetivo de também reduzir a letalidade. Nas próximas semanas, o plenário do STF deve analisar o mérito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, a ADPF das Favelas, que deu origem à decisão liminar.

Luiz Fernando Viana Ferreira, de 15 anos, aluno do 1º ano do ensino médio, foi um dos 1.509 garotos que redigiram cartas e enviaram desenhos às autoridades em 2019. À época, tinha 10 anos. No último dia 6 de março, o estudante foi recebido por Fachin, relator da ADPF das Favelas, a quem entregou outro texto escrito de próprio punho. Nele, o adolescente relata seus medos e angústias, além de expor a violência à qual todos os moradores da Maré estão submetidos. “Jeremias, um colega de escola, foi assassinado durante uma operação policial em 2018. ­Lembro-me das tardes em que assistia a desenhos na tevê e, de repente, tiros começavam do lado de fora”, escreveu Luiz Fernando. “Pensava no helicóptero atirando e nas balas atravessando o telhado. Pensava em minha mãe e meu irmão, que poderiam ser mortos a caminho de casa.”

Segundo o Instituto Fogo Cruzado, ao menos 702 crianças e adolescentes foram baleados na Grande Rio entre 2016 e 2023 – e 311 não resistiram aos ferimentos. No Complexo da Maré, o cenário não é diferente. No mesmo período, 128 pessoas morreram em decorrência de operações policiais. Desde 2017, oito moradores com menos de 18 anos perderam a vida.

Para Lidiane Malanquini, coordenadora de Incidência Política da ONG Redes da Maré, os governos têm priorizado o financiamento da guerra às drogas, enquanto a comunidade enfrenta uma série de outros problemas sociais. Ela lembra que, durante a intervenção federal na segurança do Rio, decretada por Michel Temer, perto de 23,5 mil militares foram destacados para atuar na Maré por 15 meses, a um custo de 559,6 milhões de reais. No mesmo período, o investimento da prefeitura em atividades culturais no bairro foi de pouco mais de 500 mil reais. O combate ao narcotráfico nas favelas é enxugar gelo, acrescenta Malanquini. “No Brasil, a estrutura do tráfico é transnacional, mas não há coordenação entre os entes federativos. Faltam diretrizes claras para todos os órgãos que compõem o sistema de segurança.” •

Publicado na edição n° 1353 de CartaCapital, em 19 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Infância na guerra’

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Last Update: 13/03/2025