Recentemente, o professor Alysson Mascaro deu uma longa entrevista ao jornalista Leonardo Attuch no Portal 247, na qual apresenta sua defesa contra acusações de assédio sexual a alunos. Há três meses, o site Intercept Brasil publicou uma série de relatos de estudantes, todos homens gays, que teriam sido “assediados e/ou estuprados” pelo conhecido professor da Faculdade de Direito da USP, presença constante em canais de esquerda do YouTube. A divulgação da matéria produziu como efeito imediato o “cancelamento” de Mascaro e seu consequente afastamento das funções na universidade, onde é livre-docente.
Como sabemos, o “cancelamento” é uma política dos grupos identitários, que acionam o senso comum moralista da população para condenar sumariamente, sem rito legal, desafetos que tenham alguma notoriedade. O argumento subliminar da prática é que tais pessoas não mereceriam a boa fama de que desfrutam, muito menos os proventos que eventualmente recebam por seu trabalho, impulsionados pela celebridade. É uma espécie de limpeza moral.
O procedimento é feito mediante orquestração, ou seja, divulgação maciça e simultânea de mensagens em todas as redes sociais, que, em efeito bola de neve, se tornam presentes em todo o espectro da internet. O texto do Intercept, exatamente por se apresentar como uma matéria jornalística, daria o aval à suposta veracidade dos fatos. O site, no entanto, furtou-se a divulgar os nomes dos acusadores, embora afirmasse que, sim, eles existem e que há registros em vídeo dos relatos. Nesse ponto, só resta ao leitor acreditar no que diz o site. Como os relatos desvelam a intimidade sexual do professor, que sempre foi uma pessoa discreta, o efeito “buraco da fechadura” prolifera rapidamente.
Da leitura dos relatos, o que sobressai é a homossexualidade de Mascaro, que, em sua entrevista ao Portal 247, se diz bissexual. Pouco importa isso, certo? Mais ou menos. Aparentemente, o objetivo de toda essa ação era o que já se conseguiu: o afastamento de Alysson da USP. Resta saber por quê.
Alguns elementos se alinham: 1. Mascaro tem posicionamento de esquerda não identitária (sua referência teórica, como sempre diz, é Karl Marx), 2. a Faculdade de Direito da USP é um ambiente marcadamente conservador (de amplo espectro direitista), que prepara os futuros membros do Poder Judiciário, 3. Mascaro é um homossexual que se veste de terno e gravata, como os colegas conservadores, e que não agita a bandeira do arco-íris, como seria desejável pelos identitários.
Caso usasse uma peruca loira, cílios postiços e, quem sabe, um vestido, Alysson teria um “corpo político”, como gostam de dizer os identitários. Se estivesse reivindicando acesso de transgêneros a banheiros femininos ou defendendo a linguagem neutra no Direito, dificilmente suas estratégias de sedução seriam tomadas como abuso sexual. Mascaro, no entanto, sempre manteve discrição sobre sua sexualidade, como é direito de todos. Para os identitários, no entanto, isso pode soar como “traição”. “Sair do armário” é uma espécie de obrigação de “militância”.
Mascaro, porém, ao que parece, mostra que nem todo homossexual (ou bissexual, LGBTQIA+) é necessariamente identitário. Vale notar que identitários não incomodam a ala mais poderosa da burguesia, aquela que sabe usar os talheres e dita as taxas de juros. Seus embates são sempre contra os histriônicos bolsonaristas, deslocando todo o debate político para questões laterais. Identitários jamais questionam a fortuna dos ricos e, por óbvio, têm alergia ao marxismo. Substituíram a luta de classes pela luta entre identidades, política que se manifesta no endurecimento de leis. Quer ver um identitário feliz? É só botar alguém na cadeia por ter dito a coisa errada na hora errada, “extrapolando os limites da liberdade de expressão”.
Ora, leis atingem o povo, não os representantes do capital. Graças aos identitários, um jogador de futebol sai preso de uma partida por, supostamente, ter xingado o adversário de “preto cagão” – basta a palavra do ofendido, no caso o jogador do time adversário. Quem se beneficia dessas leis draconianas é, naturalmente, a burguesia, a quem o Estado serve. Quem decide a quem punir e como punir é, ao fim e ao cabo, o Estado burguês.
O identitarismo é mais uma política da burguesia, cujo principal objetivo é reinterpretar a história da exploração de uma classe por outra. Ao diluir as classes e pôr no seu lugar indivíduos agrupados por “identidades”, o identitarismo presta um grande desserviço à consciência crítica e, ao apresentar-se como esquerda, mina a luta social. Mascaro não quis pôr sua sexualidade a serviço dessa política. Como seus colegas conservadores, veste terno e gravata e se expressa em português formal, mas, diferentemente deles, leva Karl Marx para a sala de aula.
Nestes tempos de direitização da sociedade e de enfraquecimento da esquerda, em grande parte por obra do identitarismo, Mascaro, na posição em que se encontrava na USP, tornou-se uma pessoa incômoda. A forma de atingi-lo foi jogar a turba identitária contra ele. É difícil saber se os alunos que fizeram relatos de alcova para o Intercept sabem estar a serviço da ala mais poderosa (e conservadora) do Judiciário, que influencia a principal faculdade de Direito do país, ou se são realmente ingênuos e lânguidos, como se apresentam.
No relato inicial, que desencadeou o cancelamento, o estudante anônimo conta que, sendo do interior, veio a São Paulo e se hospedou no apartamento do professor. Teria sido recebido com abraço, beijo e carícias. Em vez de se recusar ao contato físico, já que não queria ter um relacionamento íntimo, decidiu aceitá-lo e, durante o fim de semana, professor e aluno teriam tido relações sexuais por sete vezes. Se se tratasse de uma criança, não teríamos dúvida da desigualdade de condições. Um estudante de Direito, adulto, não tendo sido ameaçado por arma de fogo ou outro tipo de violência física, poderia ter-se negado. O professor diz que a relação foi consensual. O rapaz argumenta, porém, que, se se recusasse, poderia ser prejudicado por Alysson, que lhe disse ter muitos contatos no Poder Judiciário. Aí a porca torce o rabo. Estaria o professor se pavoneando, o que é parte da sedução, ou ameaçando o pobre garoto?
Novamente, o problema se reduz às palavras. Qual seria a intenção subjacente das palavras de Alysson? Conteriam uma ameaça? Ainda que a contivessem, não constituiriam crime – pelo menos, por enquanto. Mas quem precisa de julgamento à luz do Direito quando se pode condenar por cancelamento, independentemente de se configurar a culpa? É sintomático que esse caso tenha ocorrido na mais importante faculdade de Direito do país.