Na última semana, milhares de bolivianos marcharam pelas ruas de La Paz para pressionar o Tribunal Eleitoral a registrar a candidatura de Evo Morales às eleições presidenciais, previstas para o segundo semestre. Reprimidos pelas forças policiais, os apoiadores do ex-presidente – líder histórico do movimento indígena – passaram a bloquear estradas e anunciar novos protestos, após terem sua demanda frustrada pelo órgão. O cenário agrava-se em um país já pressionado por uma severa crise econômica e pela crescente desconfiança da população em relação às instituições.
O prazo para o registro das candidaturas encerrou-se em 19 de maio. Mais do que pelos nomes dos candidatos inscritos, o momento foi marcado pelas ausências. Morales foi inabilitado por já ter exercido três mandatos consecutivos e o atual presidente, Luis Arce, desistiu de buscar uma improvável reeleição. Esses movimentos colocam em xeque o futuro da esquerda boliviana, que venceu todas as disputas presidenciais desde 2005 graças à firme unidade entre movimentos sociais e forças políticas.
Passados 20 anos da histórica eleição de Morales – o primeiro indígena a governar a Bolívia –, nunca esse retrospecto esteve tão ameaçado diante da divisão do campo popular, da baixa aprovação do atual governo e do recorrente fenômeno da judicialização da política. É o que avalia o cientista político José Luis Exeni Rodríguez, ex-presidente da Corte Nacional Eleitoral. “Até agora, o grande dado a ser observado é a forte intervenção da Justiça no processo eleitoral e uma vinculação excessiva com o Executivo. O sistema vigente precisará ser reformado”, adverte.
No início do mês, a juíza Lilian Moreno foi detida após emitir uma decisão favorável a Morales, no processo em que ele é acusado de ter mantido relações sexuais com uma adolescente de 15 anos em 2015. O ex-presidente, que continua ameaçado por uma ordem de prisão em aberto, nega a acusação e se diz vítima de perseguição “racista e colonialista” encampada pelo ministro da Justiça de Arce, Eduardo Castillo, anunciado como candidato presidencial pelo Movimento ao Socialismo (MAS), até então a agremiação política que aglutinava o progressismo local.
No cenário de beligerância entre antigos aliados, o senador e dirigente sindical campesino Andrónico Rodríguez, oriundo de Cochabamba, surge com força ao representar renovação e capacidade para dialogar tanto com “evistas” quanto com “arcistas”. No entanto, sua candidatura também está ameaçada por problemas burocráticos envolvendo seu novo partido. Em março, uma pesquisa realizada pelo instituto Captura Consulting, com 1,5 mil bolivianos entrevistados, apontava o jovem parlamentar de 35 anos liderando, com quase 20% das intenções de voto.
“A liderança de Evo Morales é indiscutível, mas Andrónico Rodríguez é o mais viável para dar continuidade ao processo de mudança. O ideal seria que estivessem unidos, mas a conjuntura está se desenhando de outra maneira”, lamenta o psicólogo Ariel Ayaviri, morador da cidade de El Alto. “Será necessária muita mobilização para que seu nome apareça na urna.”
Enquanto sobra energia nas movimentações políticas, no cotidiano a população sofre com a escassez de combustível – que afeta, com maior ou menor intensidade, os nove departamentos da Bolívia –, a inflação crescente e a falta de dólares, causada em boa parte pela redução da exportação de gás. Além do encarecimento do transporte, o arroz, a farinha e a carne estão entre os itens com maior sobrepreço.
O quadro contrasta com o país que, por muito tempo, foi reconhecido pela estabilidade econômica e cuja ambição era se estabelecer como uma potência energética regional. “O modelo está esgotado. Se um governo de direita ou de centro-direita vencer, provavelmente recorrerá ao Fundo Monetário Internacional”, diz o professor universitário Alberto Bonadona.
Luis Arce desistiu da improvável reeleição. O ministro da Justiça, Eduardo Castillo, será o candidato pelo MAS
As soluções apontadas pelos candidatos conservadores remetem a estratégias já utilizadas em um passado não tão distante. “A grande surpresa deste fim de ciclo é que estamos voltando aos papéis e protagonistas de 20 anos atrás. Sente-se um ar de neoliberalismo velho no ambiente”, afirma o jornalista Gabi Rodríguez, referindo-se especialmente a Tuto Quiroga e Samuel Doria Medina, que são, no momento, os nomes mais destacados da direita.
O ex-presidente Quiroga, que herdou o cargo do ditador Hugo Banzer e foi posteriormente eleito pelo voto indireto, é considerado o mais extremista, enquanto Medina, ex-ministro do Planejamento, tenta emplacar um discurso mais ao centro. Para muitos, ambos são lembrados pela sanha em privatizar empresas públicas, pela impopularidade de suas gestões e pela repressão a protestos enquanto comandavam a máquina estatal.
A dupla tentará angariar o voto antiesquerda e precisa conquistar muitos eleitores, sobretudo no Oriente boliviano – Santa Cruz e Tarija são estados-chave – para chegar a um provável segundo turno. “Medina caracterizou-se pela responsabilidade fiscal, enquanto Quiroga garantiu uma transição pacífica no início dos anos 2000. É hora de aproveitar o divisionismo do campo popular”, argumenta o deputado Urquidi Daza.
Já Sonia Brito, ex-senadora pelo MAS, alerta para o enfraquecimento da soberania nacional em caso de vitória da oposição tradicional. “Haveria um retrocesso das conquistas sociais e se colocaria em perigo a independência da Bolívia, com a entrega dos recursos naturais – em particular o lítio – a empresas transnacionais”, sublinha.
Enquanto o período da campanha se aproxima, aumentam as tensões e incertezas para o eleitorado, que também deverá escolher a nova composição do Parlamento, elegendo bancadas de senadores e deputados para o próximo período. Além disso, não está descartada a possibilidade de que algum nome menos cotado corra por fora e surpreenda – entre eles, Eva Copa, prefeita de El Alto e única mulher na disputa. “Nenhum candidato deve conseguir maioria no Legislativo, e haverá necessidade de articular pactos para garantir a governabilidade. A fragmentação das forças partidárias, o sentimento de descrédito e a polarização criam um ambiente imprevisível”, observa Exeni Rodríguez, autor de Democracia (Im)Pactada: Coaliciones Políticas en Bolivia (Plural Editores). “Até o momento, existe mais rechaço do que adesão aos presidenciáveis. Nunca a agenda foi tão complexa para o futuro eleito.” •
Publicado na edição n° 1363 de CartaCapital, em 28 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Esquerda fraturada’