Somente este ano, o estado do Rio Grande do Sul já contabiliza o quinto evento climático extremo. Saímos de uma estiagem e de recordes de calor no início do ano e, agora, estamos enfrentando a terceira semana seguida com vários rios em cotas de inundação. No mês de junho, choveu um volume três vezes maior que a média histórica do estado. Foram 155 municípios afetados, tendo como consequência cinco mortes e cerca de 9 mil desalojados.
Inclusive o Rio Guaíba, que margeia Porto Alegre, superou a cota de inundação em alguns pontos da cidade, além de vários bairros inundados por refluxo de bueiros e colapso do sistema de drenagem. Eldorado do Sul e Canoas foram as cidades mais afetadas da região metropolitana. A obra da construção do dique está paralisada por conta de questionamentos judiciais sobre o processo de licitação. Em Canoas, o prefeito Airton Souza (PL) teve que reconhecer que metade da rede pluvial ainda não havia sido limpa do lodo da enchente do ano passado.
Responsabilidade dos governos
Evidentemente, as consequências não foram tão graves como as da enchente de 2024 que devastou o estado. Mas o que impressiona é, por um lado, a frequência dos eventos e, por outro, como os sistemas de proteção das cidades continuam totalmente vulneráveis.
Um menor volume de chuva causa inundação em regiões inteiras, não apenas gerando transtornos, mas colocando em risco as pessoas, obrigando-as a saírem de suas casas ou variando seus móveis e casas mais uma vez. Tudo isso tem um impacto tremendo na saúde mental da população – todos temem que qualquer gota a mais se transforme num novo desastre.
Os governos não deram conta do básico. Em Porto Alegre, por exemplo, o prefeito Sebastião Melo (do MDB e bolsonarista) não garantiu a reforma das casas de bombas (que suga a água das ruas e joga no rio) nem a elevação e manutenção dos diques (que são obras simples).
Segue havendo um jogo de empurra-empurra das responsabilidades entre os governos. O governador Eduardo Leite (PSDB) diz que o dinheiro que a União disponibilizou é insuficiente. Lula diz que a culpa é dos prefeitos e governadores que não encaminham os projetos. E, no meio das acusações, as obras mais importantes não acontecem e têm promessa de conclusão para dez anos!
View this post on Instagram
Promessas descumpridas
O grave problema das moradias persiste
Lula, no ano passado, afirmou que todos que haviam perdido suas casas na enchente ganhariam uma nova residência própria. Depois ficou evidente que a Compra Assistida – sistema criado para disponibilizar as casas – é limitador e muito burocrático.
Lucy Elibanis da Silva, trabalhadora da construção civil , mãe e avó e membro da comissão de moradores Fiscaliza Sarandi, desabafa: “Sou moradora do Sarandi desde 2021 e perdi minha casa, que comprei com todas as minhas economias, e depois de 14 meses ainda não consegui concluir sequer o cadastro junto à Prefeitura. Primeiro, foi o esforço para conseguir que o cadastro existisse de fato. Na situação de desabrigada, fiz o primeiro registro. Depois, no abrigo, refiz. No final de maio, refiz tudo novamente. Depois, com todas as andanças e questionamentos junto com os amigos e amigas da Comissão Fiscaliza Sarandi, foram à minha casa destruída no Sarandi fazer o laudo. Isso já era novembro. Aí foi que descobri que meu endereço e CPF estavam errados. O laudo considerou a minha casa inabitável. E, a partir daí, começou a segunda batalha: tentar acompanhar o trâmite do processo (DEMHAB, Secretaria Nacional de Habitação e afins). Perguntei, busquei, conferi a lista da Caixa e nada de respostas e nenhuma previsão. Só me frustrando a cada nova lista sem constar o meu nome”.
Ela completa: “E não é só a burocracia da Prefeitura de Porto Alegre e do Melo. As regras do programa, elaborado pelo governo federal, são absurdas. Ficaram de fora pessoas que moram sozinhas e quem tem salário maior que R$ 4.700. Eles querem que a casa [do vendedor] tenha escritura, habite-se, nenhuma pendência tributária ou judicial, não pode ter nem uma porta quebrada e nem um vidro quebrado e é limitado ao valor máximo de R$ 200 mil. Não encontramos casas que possam abrigar nossas famílias e ainda por cima atender a esses inúmeros critérios”.
Negligência e descaso
Depois de um ano, das 19.223 famílias que conseguiram se cadastrar (número inferior ao total de atingidos) apenas 1.728 famílias receberam as chaves das novas casas via compra assistida/União. O governador Eduardo Leite entregou apenas 362 casas temporárias (casas minúsculas de 30 metros quadrados para abrigar uma família em caráter provisório). Ou seja, para além do déficit habitacional histórico, mais de 17,4 mil famílias seguem esperando suas casas.
Os parlamentares do PT, PCdoB e PSOL têm criticado, com toda razão, a morosidade consciente do prefeito e do governador. Porém se calam frente a todos os entraves criados pelo governo federal. Lula tem a obrigação de indenizar integralmente as casas destruídas, sem entraves.
Tudo tem agravado o risco de morte perante as chuvas que continuam nos afetando. Apenas em Porto Alegre, de acordo com um estudo recente realizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), 7.386 pessoas vivem em áreas consideradas de alto risco – alagadiças, coladas nos arroios, submetidas a enxurradas, inundações e deslizamentos de terra. Situação que acontecia antes da enchente e continua do mesmo jeito. Aí o prefeito e governador dizem: é só cumprir os alertas da defesa civil. Ocorre que vários destes locais é de difícil acesso. Imagine um morador desses lugares receber, à noite, um alerta da Defesa Civil. Como ele vai procurar local seguro?
A tragédia como lucro
Toda essa negligência tem relação com os interesses que estão dominando e direcionando o processo de “reconstrução” do estado.
Por exemplo, o Conselho do Plano Rio Grande, que define os projetos e obras que utilizarão os recursos do Funrigs (fundo que terá o total de R$ 14,4 bilhões originários da suspensão temporária do pagamento da dívida com a União) é composto por 179 conselheiros, entre os quais, além dos representantes do governo estadual, predominam os megaempresários bilionários do estado. Isso define as prioridades de investimento.
A grande maioria dos projetos já aprovados é para construção e reparos em estradas, inclusive para rodovias que serão cedidas para a iniciativa privada no Vale do Taquari. Assim, 10% de todo o montante previsto com a suspensão do pagamento da dívida serão aplicados em obras nas quais ganharão as construtoras agora e as empresas que vão adquirir a concessão das estradas depois da concessão.
É um verdadeiro escárnio – deixaram as raposas cuidando do galinheiro.
Auto-organização popular contra a negligência dos governos submissos aos ricos
A ineficácia dos governos para resolver os problemas dos mais pobres afetados pelas enchentes é evidente, com a burocracia e a priorização de interesses de grandes empresários. Em Porto Alegre, os empreendimentos imobiliários de alto padrão estão de vento em popa, enquanto as pessoas esperam por reparação das suas perdas e obras de prevenção. Na enchente em 2024, a ausência do Estado foi visível. Foram os próprios moradores das cidades que se organizaram para salvar quem estava em dificuldade ou risco de morte.
A auto-organização da população, como a Comissão Fiscaliza Sarandi, demonstra o potencial de quem conhece os problemas e os vive na própria pele para tomar decisões corretas e utilizar os recursos em benefício da maioria, o que torna as três esferas de governo mais obstáculo do que solução. Por isso, é fundamental lutar e impulsionar a auto-organização nos bairros, em especial nos locais mais afetados, para construir um novo programa de proteção e reconstrução, unificando-se com outros movimentos de trabalhadores e da juventude, de forma independente de todos os governos.
Contudo, a superação da catástrofe climática e a garantia de soluções efetivas para a população exigem um governo da classe trabalhadora em nível nacional, por meio de conselhos populares. Que controle os recursos públicos e os direcione não para o lucro mas para a maioria da população. Que coloque grandes indústrias e empresas agrícolas sob seu controle, direcionando a produção para as necessidades sociais e combatendo a lógica de lucro do sistema capitalista e do agro, que devasta as florestas e provoca a catástrofe ambiental.
O PSTU se coloca à disposição para auxiliar nessa importante tarefa.