
Como construir uma soberania digital estatal?
por Fernando Marcelino
A soberania estatal é o poder supremo de um país para lidar com assuntos internos e externos de forma independente, enquanto administra o país. A soberania do ciberespaço é definida como a autoridade, a capacidade e o dever de um governo de gerenciar entidades da internet que operam dentro de suas fronteiras e cooperar com outras entidades da rede, frequentemente na forma de aplicação da lei.
Os países ocidentais, liderados pelos Estados Unidos, insistem que não deve haver fronteiras para o desenvolvimento da internet. Argumentam que o ciberespaço é um espaço público global que nenhum país deve dominar ou controlar. Na verdade, essa posição visa justificar sua hegemonia na internet e a prática de intervir nos assuntos internos de outros países. Atualmente, o conceito de hegemonia da Internet, que entra em conflito com a soberania do ciberespaço, ainda prevalece no mundo. Seu estabelecimento e existência dependem do monopólio de recursos estratégicos da Internet por potências ocidentais. Por exemplo, existem atualmente 13 servidores raiz no mundo, e 10 estão localizados nos Estados Unidos. Todos os servidores raiz são agora gerenciados pela Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN), que foi autorizada pelo governo dos EUA. A ICANN foi formada para assumir a responsabilidade pela alocação e gerenciamento de nomes de domínio, endereços IP, protocolos e servidores raiz.
Um fator importante que afeta a soberania do estado é a digitalização, e o efeito de desconstrução da revolução digital na soberania do estado se reflete de várias maneiras.
Em primeiro lugar, a soberania estatal está sujeita à erosão por plataformas digitais transnacionais, o que é particularmente observado em países de renda média e pequena. Incapazes de resistir à influência do Facebook, Google, Twitter, Apple e outras plataformas digitais transnacionais de grande porte, a maioria dos países de médio e pequeno porte só consegue aceitar a influência hegemônica dessas plataformas como a única opção para se integrar à futura sociedade inteligente. À medida que essas plataformas digitais transnacionais entram na esfera de governança nacional da maioria dos países, muitos parecem incapazes de restringi-las.
Em segundo lugar, os Estados estão lutando para controlar as capacidades digitais por meio de plataformas digitais nacionais. A digitalização requer muitos recursos e talentos computacionais, mas a maioria dos governos não possui esses recursos e capacidades. Portanto, eles adotam o método de compra de empresas nacionais ou internacionais para desenvolver instalações de digitalização. Ao mesmo tempo, os países tendem a apoiar plataformas digitais nacionais em termos de políticas. Como resultado, essas plataformas possuem maior capacidade do que o governo em termos de controle de recursos digitais.
Além disso, a soberania estatal é vulnerável à divisão por meio do blockchain privado. Apesar das políticas regulatórias adotadas por muitos países para moedas digitais como o Bitcoin, o desenvolvimento desse blockchain privado baseia-se em conceitos anarquistas, e sua natureza descentralizada representa um desafio à soberania estatal. Ao mesmo tempo, as redes ilegais cada vez mais ativas e as transações ilícitas de mercado baseadas em Bitcoin facilitam a fuga de atividades criminosas transnacionais à regulamentação de Estados soberanos. Além disso, algumas plataformas digitais transnacionais também cooperam com o blockchain privado, o que pode perturbar significativamente a soberania econômica dos países. Por exemplo, a emissão de moeda é o elemento mais fundamental da soberania econômica de um país, mas pode ser subvertida por corporações multinacionais e pelo sistema Bitcoin.
Diante desses desafios, muitos países relutam em aceitar a perda de soberania e tentarão estabelecer uma nova soberania na esfera digital por meio de novos esforços — a soberania digital estatal. Com a crescente influência de plataformas digitais transnacionais de larga escala em todo o mundo, alguns países começaram a enfatizar o nativismo digital, ou seja, a priorizar a localização de dados e servidores, e a valorizar as propriedades dos ativos de dados no futuro. Além disso, alguns países estão adotando medidas antimonopólio contra plataformas de dados nacionais de grande porte. A digitalização precisa de algum tipo de efeito de aglomeração e escala para aumentar significativamente a eficiência, mas esse efeito inevitavelmente traz monopolização, o que pode levar à concorrência desleal para pequenas e médias empresas digitais.
Somente implementando o conceito de soberania do ciberespaço, os países — independentemente de seu tamanho e força — poderão ter sua soberania estatal, segurança nacional, estabilidade social e segurança da informação respeitadas e salvaguardadas. Sob esse princípio, os países podem fortalecer a cooperação internacional para prevenir conflitos no ciberespaço, bem como combater conjuntamente os crimes cibernéticos. Quase todos os Estados soberanos demonstraram o desejo de possuir poder digital. No entanto, traduzir esse desejo em capacidade real é o grande desafio para uma governança digital soberana. O trabalho da soberania digital estatal apenas começou.
Fernando Marcelino é analista internacional, doutor em sociologia na UFPR e militante do MPM – movimento Popular por Moradia
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