A decisão de Donald Trump de reverter restrições e autorizar a venda do chip H20 da Nvidia para a China — sob a condição inédita de repassar 15% da receita ao governo dos EUA — foi apresentada como um triunfo comercial. No entanto, a resposta imediata de Pequim, orientando empresas a evitar esses chips em setores estratégicos, esvaziou o efeito político e econômico da medida. Para investidores, ficou claro que a guinada de Trump não veio acompanhada de garantias sobre demanda real no mercado chinês.
A exigência, também aceita pela AMD, abriria caminho para que as companhias retomem negócios bilionários com o mercado chinês, suspensos desde abril por bloqueios impostos pela própria Casa Branca. O mercado, perplexo, vê no gesto a consolidação de um modelo perigoso: o da política comercial transformada em balcão de negócios.
A operação não é classificada como imposto ou tarifa — proibidos pela Constituição dos EUA sobre exportações —, mas como “acordo voluntário”. Na prática, porém, o arranjo funciona como uma comissão paga à Casa Branca para destravar licenças de exportação previamente bloqueadas.
O contragolpe de Pequim
A China não decretou um banimento formal, mas seus comunicados desencorajando empresas — especialmente estatais — a utilizar o H20 em projetos ligados ao governo ou à segurança nacional criam um bloqueio prático. A medida preserva espaço para fabricantes domésticos, como a Huawei, e amplia a pressão para substituir tecnologia americana por soluções locais. Na prática, o gesto de Trump abriu uma porta que Pequim já tratou de estreitar.
O que começou como uma política de controle rigoroso para evitar que a China tivesse acesso a tecnologia avançada pretendia se converter em fonte de receita para Washington. Analistas ouvidos pela CNN Internacional e pelo Financial Times apontavam que não há precedentes históricos para esse tipo de transação, nem clareza sobre sua legalidade
Não há registro histórico de um governo exigir percentual de vendas externas sem assumir participação acionária.
O consultor Scott Kennedy, do CSIS, questiona o argumento de Trump que justificava o bloqueio por questões de segurança nacional: “Se o risco de segurança nacional é real, a taxa não resolve nada. Se não há risco, o governo deveria simplesmente liberar as exportações”.
Mercado perplexo
A reação chinesa, somada à imprevisibilidade da política de Trump, acentuou a volatilidade no setor de semicondutores. Analistas apontam que a estratégia americana parece oscilar entre o confronto tecnológico e a busca por ganhos de curto prazo, confundindo aliados e rivais. Enquanto isso, Pequim transforma a incerteza regulatória em instrumento para fortalecer sua indústria e controlar o ritmo da dependência de chips estrangeiros.
O acordo expõe uma contradição na política dos EUA: por um lado, o discurso de conter o avanço chinês em IA; por outro, a liberação da tecnologia em troca de receita para a Casa Branca. A lógica que morreu na praia: melhor vender oficialmente do que perder o mercado para rotas clandestinas.
O caso também abre um precedente perigoso para a ordem comercial global: se uma superpotência condiciona exportações estratégicas a pagamentos diretos ao seu governo, outras poderão adotar medidas similares, corroendo pilares da OMC.
Vitória de Pirro
Caso o triunfo de Trump se confirmasse, ele já acenava com a possibilidade de liberar — mediante condições ainda mais duras — a exportação do chip Blackwell, o mais avançado da Nvidia. O presidente sugeriu vender uma versão “reduzida” e cogitava exigir até 50% de “taxa” sobre as vendas. A habilidade dos chineses, no entanto, não apenas neutralizou ganhos como garantiu perdas irreparáveis a Trump.
Mais do que uma disputa por vendas, o embate reflete a erosão das normas que sustentaram por décadas o comércio global de tecnologia. Ao tratar controles de exportação como moeda de troca direta para receitas orçamentárias, o governo Trump sinaliza que princípios de segurança nacional podem ser negociáveis. A resposta da China mostra que, nesse novo tabuleiro, os ganhos imediatos podem ser rapidamente anulados — e que o equilíbrio de poder na corrida da inteligência artificial está longe de ser definido.