A cena foi estranha. E por isso certamente será lembrada como um evento histórico. Centenas de milhares de argentinos escutaram em silêncio uma mensagem gravada. Em tempos de frenesi audiovisual, não havia imagem. Nenhum vídeo, nenhuma fotografia, nenhum reel, TikTok ou Instagram. Nada. Apenas a voz de Cristina Fernández de Kirchner a ressoar nos alto-falantes instalados na Plaza de Mayo, clássico ponto de encontro das massas desde a revolução anticolonial de 25 de maio de 1810.

A varanda da Casa Rosada, o palácio do governo, estava deserta. O presidente Javier Milei optou por não intervir nem assistir. Ordenou, inclusive, à ministra da Segurança Nacional, Patricia ­Bullrich, que, desta vez, não colocasse nas ruas as forças de segurança para reprimir manifestações.

A mensagem da ex-presidenta, transmitida à enorme multidão reunida na ­Plaza de Mayo com cartazes que diziam “Argentina com Cristina”, foi a primeira desde que a Suprema Corte manteve a pena de seis anos de prisão imposta por tribunais inferiores por supostas irregularidades na concessão de obras públicas na província de Santa Cruz, onde seu marido, Néstor Kirchner, foi governador antes de assumir a Presidência em 2003. Além disso, Cristina Kirchner foi impedida de ser eleita ou de ocupar cargos públicos até o fim da vida. A decisão veio logo após ela anunciar a candidatura a deputada estadual por uma região populosa da província de Buenos Aires, a terceira maior.

Kirchner fez da condenação um marco histórico. Afirmou não haver provas suficientes para condená-la e que sua defesa não tinha sido ouvida. Lembrou que em outro junho, em 1955, aviões da Marinha bombardearam a Plaza de Mayo durante o governo de Juan Perón, matando 300 civis, um prelúdio do golpe que o derrubaria em 16 de setembro. Declarou que era mais um exemplo de perseguição ao peronismo, força nascida em 17 de outubro de 1945. Enfatizou que a sentença foi proferida por apenas três magistrados, pois os juízes da Suprema Corte que faleceram ou renunciaram não foram substituídos. Disse que os três – ­Horacio ­Rosatti, ­Carlos Rosenkrantz e Ricardo ­Lorenzetti – agiam sob ordens do poder econômico, alusão, entre outras, ao ­Grupo Clarín, a Globo argentina, também dono das empresas Telecom e ­Telefónica. Concluiu que não sofre uma simples condenação, mas uma proscrição.

O jornalista Raúl Kollmann, argentino que mais estudou o processo judicial contra a ex-presidenta, conhecido como “Caso das Estradas”, afirma que “ao longo de três anos de julgamento, Cristina não foi mencionada e não foi apresentado um único bate-papo ou e-mail que a vinculasse à construção das estradas em Santa Cruz”. E acrescentou: “As obras foram supervisionadas pela Autoridade Nacional de Rodovias, entidade autônoma, e a auditoria também mostrou que as obras foram bem executadas e que nada foi pago que não tivesse sido construído”.

CFK, como é conhecida no meio político por suas iniciais, enfrenta agora um problema jurídico e político. No âmbito da Justiça, conseguiu a prisão domiciliar por ter mais de 70 anos – está com 72. Optou por não ir para Calafate, na Patagônia, uma das maravilhas turísticas da Argentina, onde possui uma casa. Em vez disso, permaneceu no segundo andar de um prédio localizado na Rua San José, 1.111, bairro de classe média a 2 quilômetros e meio da Plaza de Mayo.

Até o tribunal conceder sua prisão domiciliar, CFK falou diversas vezes da sacada para a multidão que a visita como se fosse um destino de peregrinação. O tribunal ordenou o uso de tornozeleira eletrônica, o que seus advogados consideram desnecessário para alguém que nunca tentou escapar e sempre compareceu às intimações judiciais.

A batalha agora é sobre o direito de visita. Os juízes permitiram a entrada apenas de familiares e advogados. Os demais devem solicitar autorização à Justiça. Entre eles está o presidente Lula. O deputado federal, Paulo Pimenta, do PT, participou da manifestação na Plaza de Mayo em solidariedade. O ex-ministro anunciou que o próprio Lula pretendia visitar a ex-presidente no início de julho, quando irá a ­Buenos Aires para uma reunião do Mercosul.

A ex-presidenta está em prisão domiciliar. O líder petista quer visitá-la

CFK não visitou o petista enquanto ele esteve preso em Curitiba, mas a relação entre os dois sempre foi boa. “Cristina respeita Lula como a um irmão mais velho”, disse um ex-diplomata que conhece de perto a relação entre os dois. “Ela sempre se lembra do carinho que Lula lhe demonstrou quando viajou para a Argentina após a morte de Néstor Kirchner, em 27 de outubro de 2010.” A visita faz parte de uma estratégia internacional: embora a popularidade global de ambos os líderes não seja a mesma, assim como houve uma campanha “Lula Livre”, a intenção é lançar uma campanha “Cristina Livre”.

O principal desafio de CFK é, no entanto, político. Ela continua a ser um nome muito importante do peronismo, mas deixou de ser a líder indiscutível dessa corrente. A condenação reativou os reflexos defensivos do kirchnerismo e a solidariedade com a ex-presidenta, mas ela ainda não logrou reduzir a taxa de rejeição acima de 50% em todas as pesquisas de opinião. O peronismo, após a derrota para Milei em 2023, passou por um terremoto. Como diz o líder Juan Manuel Olmos, “tornou-se um arquipélago”. Uma fragmentação que não tem mais a articulação habitual entre governadores estaduais, líderes sindicais e parte dos legisladores.

Enquanto alguns governadores se aproximaram da Casa Rosada, numa espécie de fisiologismo à brasileira, mas sem deixar formalmente os partidos, surgiu como figura anti-Milei o governador Axel Kicillof, do estado de Buenos Aires, com 17 milhões de habitantes. Localizado no centro-esquerda do peronismo e ex-ministro da Economia de CFK, Kicillof não declarou publicamente a intenção de disputar a Presidência em 2027. Parece, no entanto, uma figura poderosa. Não por outro motivo, Milei o escolheu como alvo a ser destruído nas eleições legislativas deste ano. Como as pesquisas revelam que a honestidade de Kicillof é inquestionável, a extrema-direita quer apresentá-lo como o governador que não consegue controlar o suposto “banho de sangue” causado pela insegurança. A campanha suja, especialmente nas redes sociais, ignora o fato de que, em 2024, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes foi de apenas 4,34.

Kicillof participa da campanha “CFK Livre”, mas atualmente discute com o filho da ex-presidenta, o deputado federal Máximo Kirchner, o reconhecimento de sua posição não apenas como governador, mas também como líder político com poder de decisão. •


*Martín Granovsky é colunista do jornal argentino Página/12, diretor do site “Y ahora qué” e comentarista do programa de televisão QR.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1368 de CartaCapital, em 02 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘CFK Livre’

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Last Update: 26/06/2025