CELAC e a Integração Regional: movimentos favoráveis ao regionalismo ou blocos alinhados a políticas momentâneas?
por João Pedro de Oliveira Guida de Queiroz, Albert Zampieri, Giovanna Pimenta de Castro, Geovanna da Silva Luciano e Maria Eduarda Pepe
A 9ª Cúpula da CELAC, marcada pelo retorno do Brasil e pelo discurso de Lula em defesa de uma integração além das ideologias, reacendeu o debate sobre a necessidade de mecanismos mais estáveis e menos sujeitos a reveses políticos. Mas a dependência desses blocos dos governos de ocasião tem dificultado avanços concretos.
A CELAC e os desafios para integração latino-americana
A 9ª Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) ocorreu em Honduras em 9 de abril de 2025, com a participação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A cúpula fez parte de um processo de revitalização da CELAC após enfraquecimento nos últimos anos, inclusive pela saída do próprio Brasil durante o governo Bolsonaro (2019-2022).
Em seu discurso, Lula reforçou a necessidade de harmonia entre os países da América Latina e do Caribe para se fortalecer a integração regional. O presidente destacou a necessidade de uma nova ordem global, com harmonia e união dos países da região, por meio de uma ação estruturada em três temas, a defesa da democracia, a mudança climática e a integração econômica e comercial.
Estabelecida como um mecanismo intergovernamental de diálogo e de acordo político que inclui 33 países da América Latina e do Caribe, a CELAC pretende ser um fórum regional desde seu lançamento em 2011, com o objetivo primordial de avançar em uma maior unidade e autonomia no cenário geopolítico. Ao discutir interesses comuns e atuar como um catalisador para outras organizações, coloca uma estratégia alternativa aos interesses hegemônicos estadunidenses (JUNG, 2017).
Regionalismo na América Latina: da CEPAL ao Consenso de Washington
O avanço nas discussões sobre a integração regional na América Latina remonta ao “regionalismo fechado” da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) (SILVA ET AL., 2022), cujos estudos segundo a abordagem histórico-estruturalista diagnosticaram o modelo “hacia afuera”, e não “hacia dentro” (MORAES, IBRAHIM, MORAIS, 2019). Dessa forma, a CEPAL defendeu um projeto de integração regional baseado na realidade autêntica latino-americana, em que era necessário um “Estado-empreendedor”, por sua vez capaz de investir em infraestrutura e industrialização e de alterar o padrão das políticas públicas, além de promover o modelo de substituição de importações para impulsionar a indústria nacional.
Apesar de as demandas cepalinas terem exercido influência no pensamento econômico da época, elas não foram isentas de críticas. O projeto antagonista nesse período foi o da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), que surgiu em meio a inúmeras objeções, tanto estatais quanto de organizações multilaterais (SILVA ET AL., 2022). A ALALC aproximava-se mais do modelo de integração por meio do livre-comércio e, em 1980, foi substituída pela Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), mais flexível em relação a seus acordos e metas de desenvolvimento.
A partir dos desafios econômicos decorrentes do fim do sistema Bretton Woods, nos anos 1970, e posteriormente, das mudanças políticas com o fim da Guerra Fria, nos anos 1980, o chamado “regionalismo aberto” ganhou força. Fundamentado nos projetos de liberalização comercial e flutuação monetária, e capitaneado pelos EUA, esse movimento criou um novo paradigma nas relações internacionais. Isso ocorreu por meio do Consenso de Washington, que desafiou as políticas cepalinas do “Estado-empreendedor” em direção ao modelo de “regionalismo aberto”, como forma de se inserir no sistema globalizado (GRANJA HERNÁNDEZ, MESQUITA, 2020).
Foi em meio às políticas neoliberais, adotadas pela quase totalidade dos governos da América Latina, que foi fundado, em 1991, o Mercado Comum do Sul (Mercosul) com a assinatura do Tratado de Assunção pelos governos de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. O bloco, inicialmente focado na liberalização comercial e na constituição de tarifas comuns, estabeleceu o objetivo de uma união aduaneira,atualmente não vigente.
A “onda rosa” e o surgimento do regionalismo pós-neoliberal
Já no final do século XX e começo do século XXI, após anos sob influência das políticas neoliberais, os países do Mercosul vieram a eleger presidentes progressistas e críticos ao neoliberalismo, processo que ficou conhecido como “onda rosa” — do termo em inglês “pink tide” cunhado por Rother (2005) —, com destaque para Lula no Brasil em 2002, Néstor Kirchner na Argentina em 2003 e Tabaré Vázquez no Uruguai em 2005 (OLIVEIRA, 2020).
A “onda rosa” foi extremamente importante para se opor aos modelos de integração baseados nos ideais estadunidenses, pois abriu espaço para o surgimento de um regionalismo pós-neoliberal de cooperação setorial em áreas como infraestrutura, energia e defesa. Além disso, esse novo regionalismo promoveu um constante diálogo político entre os países envolvidos para além do Mercosul, como a Venezuela governada por Hugo Chávez (1998-2013) e a Bolívia por Evo Morales (2006-2019). Esses dois países vieram a fazer parte do Mercosul, respectivamente, em 2012 e 2019. Desde 2017, a Venezuela encontra-se suspensa.
Além da própria CELAC, dois outros projetos de integração regional estão constituídos. Em 23 de maio de 2008, a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) resultou da 3ª Cúpula de Chefes de Estado, realizada no Brasil e que chegou a ter 12 países signatários em 2010. A divergência entre governos, em que pesou a crise política no Brasil em 2016, levou à vacância de um secretário-geral em 2017 e à saída de seis países até 2019. Naquele ano, a iniciativa do Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (Prosul) foi lançada numa cúpula no Chile em 23 de março e teve oito signatários.
Ambos os projetos possuem objetivos intergovernamentais, mas nenhum deles teve encaminhamentos efetivos. Apesar dos projetos partirem da premissa de uma maior integração regional, ambos possuem caminhos distintos para alcançá-la, o que tem levado a uma disputa de espaço. O enfrentamento entre ideias progressistas e neoliberais resultou numa institucionalidade precária e na ausência de um planejamento a longo prazo.
Durante o discurso na 9ª Reunião da CELAC, o presidente Lula demonstrou a busca por um delineamento conciso para a região, que “[…] não deve ficar à mercê de divergências ideológicas”. Para ele, “[…] Mesmo que reconheçamos seu mérito em forjar convergências, é inegável que hoje ela tem gerado mais paralisia do que unidade”. A declaração evidencia a urgência de uma estratégia da CELAC frente à crônica incapacidade de superar divisões políticas.
Muito da dificuldade de ampliar o movimento de integração passa pela associação dos projetos aos governos vigentes. De acordo com Ribeiro e Gomes (2024, p.169), “[…] a integração é um processo que necessariamente transcende a questão econômica, alcançando as dimensões social, cultural e política”. Porém, da mesma forma que a região não passa por uma totalidade política, os projetos acompanham essa tendência, formando oscilações entre decisões progressistas e conservadoras, como forma de mutuamente se anularem.
A mudança de governos de orientação progressista para neoliberal prejudica a continuidade institucional e o desenvolvimento de projetos regionais (GRANJA HERNÁNDEZ, MESQUITA, 2020). Embora a CELAC tenha potencial como espaço de convergência política, ainda se depara com desigualdades econômicas, escassa complementaridade produtiva e dependência externa (SILVA ET AL., 2022).
Os modelos de integração latino-americanos, historicamente, espelham os contextos globais e suas ideologias predominantes. Desde o “regionalismo fechado” da CEPAL no pós-guerra até o “regionalismo aberto” na década de 1990, o continente manteve dinâmicas de dependência ao invés de estabelecer um projeto de desenvolvimento independente (BRESSER-PEREIRA, 2006).
Projetos complementares: para uma agenda comum e institucionalizada
Além de reacender as organizações regionais já existentes, o Brasil também investe em outras formas de estreitar as relações sul-americanas. Um exemplo disso é o projeto “Rotas de Integração Sul-Americanas”, que busca aprimorar o comércio em toda a América Latina. Esse projeto prevê cinco rotas estratégicas, com o objetivo de reduzir o tempo e o custo do transporte de mercadorias. Dessa forma, facilita não apenas o comércio entre os países vizinhos, mas também fortalece as conexões com a Ásia.
Simone Tebet, ministra do Planejamento e Orçamento eidealizadora do projeto a pedido da presidência brasileira, destacou, no 14º encontro de Líderes do Sistema Confea/Crea e Mútua em 28 de janeiro de 2025 em Brasília, que as rotas contribuirão para o aumento da competitividade dos produtos regionais, para fortalecer os laços culturais com os vizinhos e para encurtar o tempo de comércio com a Ásia.
A participação ativa do Brasil na reativação dessa interação inter-regional na América do Sul reflete o debate de uma possível segunda “onda rosa” (LUCENA, 2022). Porém, esse movimento dificilmente progredirá do ponto de vista político enquanto Javier Milei presidir a Argentina, ausente da 9ª Cúpula da CELAC em 2025. É justamente a fragmentação política que impede a formação de uma agenda compartilhada e focada em questões estruturais como a desigualdade social, a justiça climática e a integração produtiva (JUNG, 2017).
Referências:
ALADI (Associação Latino-Americana de Integração). O que é a ALADI. Disponível em:https://www.aladi.org/sitioaladi/language/pt/o-que-e-a-aladi/. Acesso em: 13 abr. 2025.
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Mecanismos de integração regional: Mercosul. Brasília, 1 ago. 2016. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/assuntos/mecanismos-internacionais/mecanismos-de-integracao-regional/mercosul. Acesso em: 13 abr. 2025.
BRASIL. Ministério do Planejamento e Orçamento. Projeto das rotas de integração sul-americana representa desenvolvimento, emprego e renda, diz ministra do Planejamento. Disponível em:https://www.gov.br/planejamento/pt-br/assuntos/noticias/2025/fevereiro/projeto-das-rotas-de-integracao-sul-americana-representa-desenvolvimento-emprego-e-renda-diz-ministra-do-planejamento. Acesso em: 13 abr. 2025.
BRASIL. Ministério do Planejamento e Orçamento. Rotas de Integração Sul-Americana. Disponível em:https://www.gov.br/planejamento/pt-br/assuntos/articulacao-institucional/rotas-de-integracao-sul-americana. Acesso em: 13 abr. 2025.
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. O conceito histórico de desenvolvimento econômico. Trabalho originalmente preparado para curso de desenvolvimento econômico na Fundação Getúlio Vargas, versão de 2 de março de 2006. Disponível em:http://www.bresserpereira.org.br/papers/2006/06.7-conceitohistoricodesenvolvimento.pdf. Acesso em: 14 abr. 2025.
CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos). CELAC International – Seguimos fazendo história. Disponível em: https://celacinternational.org/. Acesso em: 13 abr. 2025.
GRANJA HERNÁNDEZ, Lorena; MESQUITA, Barbara. Da Unasul ao Prosul: (contra)dinâmicas na integração regional e suas consequências acumulativas. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD, [S. l.], v. 9, n. 18, p. 538–563, 2020. DOI: 10.30612/rmufgd.v9i18.11972. Disponível em: https://ojs.ufgd.edu.br/moncoes/article/view/11972/7629. Acesso em: 13 abr. 2024.
JUNG, João Henrique Salles. O papel da CELAC no processo de integração latino-americano e na inserção internacional do Brasil. Revista de Iniciação Científica em Relações Internacionais, v. 5, n. 9, p. 27-56, 2017. Acesso em: 13 abr. 2025.
LUCENA, Leonardo. Existe uma nova Onda Rosa na América do Sul? Blog FCA, 2023. Disponível em:https://blogfca.pucminas.br/colab/existe-uma-nova-onda-rosa-na-america-do-sul/. Acesso em: 13 abr. 2025.
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MORAES, Isaías Albertin de; IBRAHIM, Hermano Caixeta; MORAIS, Leandro Pereira. O pensamento da CEPAL de 2010 a 2018: o enfoque na mudança estrutural produtiva para igualdade (MEPI). Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 1–26, 2020. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/198055272413. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/rec/article/view/33964/19017. Acesso em: 13 abr. 2025.
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RIBEIRO, Luís Henrique Matos; GOMES, Maria Terezinha Serafim. Desarticulação da integração regional na América do Sul: algumas considerações sobre a UNASUL. Revista Cerrados, v. 22, n. 01, p. 166-193, 2024. Disponível em: https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/cerrados/article/view/6958. Acesso em: 13 abr. 2025.
SILVA, Armstrong Pereira da; ABI-RAMIA, Rodrigo de Paula; MORAIS DA SILVA, Ana Karolina; GRASSI, Jéssica Maria. Onde estivemos e para onde vamos: desafios e perspectivas contemporâneas à integração sul-americana. Revista de Estudos Internacionais, João Pessoa, v. 13, n. 2, p. 164-192, 2022. Disponível em: https://revista.uepb.edu.br/REI/article/view/1617/1194. Acesso em: 14 abr. 2025.
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