Se havia alguma dúvida sobre o deliberado propósito golpista do ex-presidente Jair Bolsonaro, ela não existe mais. E se antes a palavra “golpe”, para alguns, fosse um substantivo que, no âmbito das ciências humanas em geral, pudesse significar uma reprovabilidade do jargão político, agora é inequívoco que deve ser adotada para representar a prática de um crime contra as instituições democráticas. “Golpe de Estado”, com todos os elementos do tipo constantes do artigo 359-M do Código Penal.
Aliás, referida previsão do Código Penal foi nele incluída por meio da Lei nº 14.197, de 2021, a qual decorreu de discussões legislativas que, por iniciativa do deputado federal Paulo Teixeira, tive a honra de participar em conjunto com outros juristas. Na ocasião, constatamos que a inexistência de um regramento específico, de natureza penal, para a defesa do Estado Democrático de Direito ensejava manifestações públicas, veladas ou explícitas, severamente perturbadoras do normal funcionamento das instituições democráticas, minando as bases do nosso Estado Democrático de Direito constitucionalmente estabelecido.
Com efeito, antes e depois dos fatos principais objeto do recente indiciamento pela Polícia Federal, ocorreram graves eventos atentatórios às instituições democráticas e, em escala mais ampla, ao próprio sistema de proteção de direitos fundamentais. Não podemos nos esquecer que Bolsonaro proliferou desinformações quanto ao processo eleitoral e às urnas eletrônicas, jamais reconheceu a vitória do presidente Lula nas eleições e estimulou atos ilegítimos em frente aos quartéis.
Ademais, atos de terrorismo no Aeroporto Internacional de Brasília, em dezembro de 2022 e, mais recentemente, no Supremo Tribunal Federal, apenas corroboram a irremediável conclusão de que o 8 de Janeiro de 2023 não foi um mero evento isolado de dilapidação do patrimônio público. Na ocasião, nossa democracia e símbolos dos poderes constituídos da República brasileira foram, sem precedentes na nossa história, desafiados.
A extrema-direita de matriz bolsonarista vinha, como nunca, valendo-se do medo, do ódio e da mentira como capitais políticos. A gradual fragilização dos espaços e dos sentidos da democracia e da relação de pertencimento à sociedade ocorreu por meio de específicos artifícios enfraquecedores do pacto civilizatório e das instituições democráticas. Entretanto, para além de mera estratégia política de reprodução e dissipação, o bolsonarismo foi muito além. Atos de violência visaram, para além do mero inconformismo com o processo eleitoral que elegeu o presidente Lula, implementar um golpe de Estado e abolir o Estado Democrático de Direito.
O farto e irrefutável acervo probatório colhido pela Polícia Federal, por intermédio de uma investigação que deve, seguramente, figurar como uma das mais relevantes para a história da instituição, nos levam à irremediável conclusão de que houve, sim, o crime contra a instituições democráticas. Nunca tivemos no Brasil uma investigação dessa magnitude, que indiciou generais e altos oficiais das Forças Armadas por crimes tão graves. Isso é histórico e precisa ser reconhecido.
A implementação dos atos com o objetivo da deposição do governo eleito, bem como daqueles a visar o assassinato do presidente Lula, do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, foi capitaneada por agentes estatais, civis e militares, de mais elevada envergadura na República em uma trama golpista, exaurindo o tipo penal.
Essas investigações são fundamentais para a consolidação do nosso Estado Democrático de Direito. Permitir que narrativas falsas prejudiquem a Justiça seria um retrocesso grave. Não estamos diante de meros atos preparatórios, mas de uma execução real, apenas interrompida por questões logísticas. A execução foi iniciada, mas interrompida por razões alheias à vontade dos envolvidos. No caso de golpe de Estado, o crime inicia-se pelo planejamento.
As provas são claras, consistentes e revelam a gravidade dos crimes cometidos contra a nossa democracia. Esses atos atingiram diretamente o coração do Estado Democrático de Direito. Não estamos falando apenas de discursos golpistas, mas de ações concretas, como planos de sequestro e assassinato de autoridades, que colocaram em risco a própria democracia brasileira. A questão precisa ser tratada com a seriedade exigida. A condenação deve ser dura. Inexistem concessões possíveis.
Publicado na edição n° 1339 de CartaCapital, em 04 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Golpe’