O cineasta Claude Chabrol foi um nome importante do movimento cinematográfico que ficou conhecido como Nouvelle Vague e que gerou toda uma geração de cineastas franceses na década de 1960.
Recentemente, tive a oportunidade de assistir a um de seus filmes mais conhecidos – Os Amantes (Les Amants, 1958), com Jeanne Moreau no papel de uma burguesa infeliz com seu casamento.
O filme é transgressor para os padrões morais daquela época e corre muito o risco de se tornar igualmente imoral para os padrões atuais.
Trata-se de uma história sobre conflitos de classes. Provinciana, Jeanne (também o nome da personagem) se casa com um homem mais velho e proprietário de um jornal de Dijon. Ela passa dias na casa de uma amiga de infância em Paris, onde frequenta rodas sociais e tem um amante. Um dia, conhece um professor por quem se apaixona, deixando tudo para trás.
No filme, são as relações sociais que definem as relações amorosas. É de uma criatividade raramente vista. Normalmente, consumimos o oposto: os filmes românticos disfarçam as relações de classe e, no máximo, como em milhares de comédias românticas americanas, uma mulher é salva da pobreza e se torna a Cinderela de algum príncipe encantado.
A transgressão da personagem de Jeanne está no fato de que ela não se adequa ao seu círculo social, ao qual entrou pelo casamento. Para entender sua motivação é necessário compreender também os conflitos de classe naquele momento e, em especial, na cultura francesa.
Tanto essa crítica, quanto a recepção no Brasil de 1960 foram documentadas. O crítico de cinema Carlos Alberto Silva, na época colunista do jornal O Estado de S. Paulo, escreveu cerca de cem textos, todos intitulados Os Amantes Ultrajados, para discutir a recepção do filme no país e também os seus temas. Vale a leitura.
No caso da recepção, ele conta que uma organização privada católica – a União das Famílias Cristãs – entrou na justiça para censurar o filme à revelia das leis e dos próprios órgãos de regulamentação de exibição cinematográfica federais existentes na época.
Diante do fato de que o órgão regulador federal permitiu a exibição, a união em questão apelou para a polícia e para o sistema judiciário. Diz ele:
“Tornou-se evidente que estavam se familiarizando com a prática da censura privada, que consistia em coagir os comerciantes a efetuar cortes nas películas, sob a ameaça de processos criminais. A função do grupo de Orientação [da referida União] já não era orientar determinado setor do público, ou influir na seleção das obras para os menores, mas pura e simplesmente impor os seus critérios particulares de julgamento à totalidade dos espectadores.”
Mais adiante, revela ele:
“Cada um dos processos criminais promovidos pela União das Famílias Cristãs foi precedida de tentativas de intimidação contra exibidores cinematográficos. A associação privada convidava-os a cometer uma ilegalidade caracterizada, isto é, a praticar cortes nas películas.”
E conclui:
“O que em última análise me desacorçoa na atividade cinematográfica da União das Famílias Cristãs é a sua total esterilidade cultural e humana. O espírito negativo e pessimista da União tende a criar um clima moral insalubre. É por isso que a atividade cinematográfica da União das Famílias Cristãs é nociva para a comunidade paulista. Em assunto de cinema, a União das Famílias Cristãs não merece respeito.”
Se pensarmos que esses textos foram escritos em 1960, antes, portanto, do golpe de estado de 1964, temos uma pequena noção do caldo cultural que existia naqueles anos.
Hoje, novamente, nos vemos presos em discussões estéreis envolvendo religiões e moral. Igualmente, percebemos as teias dos processos judiciais como recursos de coerção a ações e discursos que não se enquadrem nas determinações de grupos privados poderosos. Como podemos perceber, é o mesmo tipo de sabotagem tacanha. O que mudou é o meio, visto que o alvo agora são as redes sociais.
Os Amantes pode ser assistido na plataforma online Sesc Cinema em Casa gratuitamente.
Os textos de Carlos Alberto Silva estão no Volume 2 de uma coletânea publicada pela editora Paz e Terra.