Tornou-se comum afirmar que a esquerda precisa “voltar às bases”, retomar mobilizações, frequentar a periferia e melhorar a comunicação com o povo. A ausência de um trabalho permanente teria aberto a porta ao crescimento da extrema-direita e/ou seria a causa da colheita de maus resultados em eleições.
Com muito mais frequência, o País é pautado pelos interesses da burguesia ou pela atuação político-ideológica da extrema-direita contra os interesses da maioria. Parece óbvio que houve tentativas de liderar o debate com vários temas importantes: contra as indecentes taxas de juro, o enfrentamento à fome, a defesa da democracia… O fato é que nenhum deles viralizou.
Avaliar duas lutas que conseguiram esse feito permite tirar lições para alavancar outros embates estratégicos para a maioria do povo. Eis o que considero pontos centrais.
Pauta da maioria e liderada com legitimidade
A luta foi encampada pelos setores mais numerosos da sociedade e liderada por figuras com quem esses setores têm identificação direta. A oposição ao PL do Estupro tem o apoio de 52% da população ou mais, e são as mulheres que têm estado mais organizadas atualmente, mantendo mobilizações pequenas, mas constantes, que mostraram que aquele PL, agora a PEC 164, é um problema social em todos os cantos.
A bandeira do fim da escala 6×1 foi levantada por negros, pobres de periferias e LGBTs, como o Rick Azevedo e a Erika Hilton. O movimento negro é também um dos grupos mais organizados e mobilizados da sociedade atualmente que encabeçaram essas lutas, mostrando uma pauta que atinge milhões de brasileiros, em maior ou menor grau.
Objetiva, emotiva e ampla
Personalidades tão diferentes como Luana Piovani e o senador Cleitinho têm experiências objetivas para contar sobre os prejuízos da escala 6×1 ou no caso do PL. Todo mundo conhece uma menina estuprada e causa horror imaginar a imputação de crime a uma garota por não levar adiante uma gravidez com pena maior do que a normalmente aplicada ao estuprador. Além disso, podem ser articuladas com outros debates, entre eles o enfrentamento à crise climática e a taxação das grandes fortunas. As pautas são sobre um tema objetivo o suficiente para mobilizar emoções e vida concreta, mas amplos o bastante para permitir conectar com outros debates sociais, o que faz o assunto render.
As pautas permitiram furar a bolha e mobilizar milhões de brasileiros
Forma de acuar a extrema-direita
Essas pautas conectam-se às famosas ideias “defesa da família” e “defesa da vida”, quando mostram que o PL pode acabar com a vida de crianças e o fim da escala 6×1 é a defesa da família, visto que permitiria a convivência, inclusive a frequência no culto. O debate deixa a extrema-direita de “calças na mão” e com dificuldades de se opor, permitindo conquistar aqueles capturados por ideologias fascistas.
Comunicação
São capazes de expressar temas complexos em poucas palavras “Criança não é mãe!”, “PL 1904 é o PL do estuprador”, “a escala 6×1 é escravidão”, “a escala 6×1 é desumana”, utilizando a estratégia do chamado pânico moral a nosso favor. As lideranças falam de maneira incisiva, com frases curtas e de impacto, eficientes nas redes sociais, e convidam à ação, como a extrema-direita fez com o kit gay.
Mobilização
Há uma articulação nas redes com mobilizações de rua que incluem panfletagens e atos, que não foram massivos, mas geraram impacto, e que aconteceram em muitos lugares, dependendo de organização relativamente simples. Chamados com frequência uma ou duas vezes por mês e que privilegiam a auto-organização, do tipo “fiz cem panfletos e vou distribuir no meu bairro”. Sem burocracia.
Ação
As mobilizações nos locais de trabalho e nas ruas são acompanhadas por intensas ondas nas redes sociais que dependem de uma estratégia de guerrilha digital. As coordenações definem “alvos” – celebridades ou políticos – de quem eles exigem apoio com metas: faça dez comentários, marque em três publicações… A cobrança segue intensa até que seja impossível ignorar e obrigue uma manifestação. Caso seja favorável, o “alvo” recebe divulgação positiva. Caso responda negativamente, recebe uma avalanche de xingamentos e divulgação negativa.
Não é um processo sem conflitos. Há risco de esse método cair no denuncismo ou aprofundar o sentimento de “nós contra eles” tão fomentado pelas redes sociais, mas é possível calibrar o formato e aumentar a formação política.
É preciso registrar que o Movimento VAT procurou por apoio e a maioria demorou a compreender a importância e o potencial. Eu mesma, que acompanho o movimento desde janeiro, enviei informações ao PT e a sindicatos, fiz vídeo, organizei uma comissão especial na Câmara de Vereadores sobre essa pauta, divulguei a petição e distribuíram panfleto específico na campanha à vereança, mas ninguém deu nenhuma atenção. Cito o meu caso, apenas como exemplo, foram muitas as iniciativas.
A esquerda e o governo precisam parar de titubear e abraçar essas causas com toda a força e proatividade, sem afobamento e sem pretender se apropriar ou tomar o movimento de ninguém, mas para fortalecer e contribuir com o avanço no seu nível de politização. E utilizar as circunstâncias para compreender quais outras pautas têm potenciais semelhantes e que métodos podem fazer com que seja possível continuar na ofensiva contra a extrema-direita. Só a luta muda a vida. Mas só a pauta correta consegue mobilizar, só as lideranças com o perfil articulado ao momento histórico com as táticas adequadas podem torná-la uma luta massiva e fazer recuar o fascismo. •
*Professora do IFSC, sindicalista e comunicadora social.
Publicado na edição n° 1339 de CartaCapital, em 04 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O que interessa’