Nesse fim de semana, assisti ao filme “Cabra marcado para morrer”. É um documentário sobre a situação do campesinato no sertão durante a ditadura militar, com entrevistas bem interessantes. Nele, estão registrados depoimentos curiosos, como os relatos dos campesinos de que o exército havia ido lá perguntar onde estavam os documentaristas, que supostamente seriam cubanos querendo fazer uma revolução comunista no sertão nordestino. O detalhe é que os documentaristas não eram nem cubanos, nem comunistas, eram artistas brasileiros.

Dentre os vários fatores interessantes no documentário, um me pareceu central: a capacidade de articulação da fala dos campesinos. A maioria deles eram analfabetos que nunca tinham vivido na cidade, com acesso nulo à instrução formal. Apesar disso, tinham uma leitura precisa da realidade e excelente capacidade de se expressar. Muitos dos discursos e falas presentes no documentário são notoriamente mais eloquentes do que o que vemos hoje nas universidades. Como isso é possível?

Dois fatores são centrais para a compreensão dessa crise. O primeiro é a decadência universitária em virtude da privatização massiva do ensino superior, algo que já comentei em outro artigo. O segundo fator é o desmantelamento das organizações populares no campo e na cidade. Explico.

Quando alguém se vincula a uma organização na qual a participação ativa dos membros e o debate são incentivados para a construção de consensos e a definição de encaminhamentos concretos, a capacidade de expressão verbal é continuamente estimulada. Nesse contexto, não basta apenas expor opiniões; é fundamental exercitar a escuta atenta, refletir criticamente sobre as ideias em circulação e estruturar argumentos para embasar suas proposições. Além disso, o processo exige o desenvolvimento de habilidades de persuasão, pois convencer os demais membros sobre a validade de determinada perspectiva requer não apenas lógica e coerência, mas também sensibilidade para compreender diferentes pontos de vista e articular um discurso que dialogue com as expectativas do grupo. Dessa forma, a participação em organizações com espaços deliberativos não apenas fortalece a comunicação, mas também aprimora a capacidade de argumentação e negociação, habilidades essenciais para o dia a dia.

Fato é que há cada vez menos organizações desse tipo e, as poucas que restam, como associações e sindicatos, estão paralisadas. Tal paralisia se deve à falta de perspectiva para os trabalhadores da cidade e do campo, além da repressão contra as possibilidades de reivindicação que se intensificou. Vale lembrar que o direito de greve hoje é praticamente inexistente, pois as sucessivas mudanças na legislação fizeram com que as greves possam facilmente ser consideradas ilegais e as entidades que organizaram as greves serem condenadas a pagar cem mil reais. Assim, ficamos submetidos a salários horríveis e péssimas condições de trabalho, sem espaço para debater essas pioras e reivindicar melhorias.

O mais importante é notar que o impacto do desmonte das organizações populares vai muito além da piora nas condições de trabalho. É visível o embrutecimento da capacidade da população de se expressar, apesar dos crescentes índices de escolaridade no país. Não adianta investir em educação se não há onde a população possa se expressar. O que precisamos fazer é voltar a estimular a formação de grupos onde as pessoas discutam profundamente temas sociais, e isso passa pela mobilização popular.

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Last Update: 13/02/2025