O colapso da legalidade sob Trump 2.0 e os reflexos autoritários no Brasil

por Gisele Agnelli e Luciana Bauer

Nos Estados Unidos de 2025, testemunhamos um processo acelerado de corrosão institucional que desafia não apenas a Constituição norte-americana, mas também os limites da legalidade democrática como a conhecemos. O segundo mandato de Donald Trump não esconde mais sua intenção de reconfigurar os fundamentos do Estado de Direito, ora convertendo o orçamento em instrumento de dominação política, ora utilizando leis de exceção para governar por decreto e punir adversários. Aos ataques recentes ao Brasil devem ser observados dentro deste contexto.

No centro dessa engenharia autoritária, mais recentemente, está o chamado “Big, Beautiful Bill”, o mega orçamento aprovado via reconciliação orçamentária, que embute cláusulas não-orçamentárias, como restrições ao acesso ao Medicare, em flagrante violação ao devido processo legislativo. “O orçamento tem que se restringir a questões orçamentárias. É redundante, mas parece óbvio. Mas não é, porque umas coisas que ele está colocando ali, como cláusulas específicas de quem tem acesso ao Medicare, têm que passar pelo Legislativo” (Gisele Agnelli).

A legalidade é subvertida de forma técnica e silenciosa. O uso da International Emergency Economic Powers Act (IEEPA), uma legislação originalmente concebida para momentos de guerra ou crises internacionais, foi distorcido por Trump para impor tarifas comerciais em massa. A manobra ignora o espírito da lei, que foi acionada por presidentes anteriores, como Obama e Bush, em contextos de ameaças terroristas e ataques cibernéticos. Em vez de tempos de excepcionalidade, temos um expediente autoritário para burlar a conversa saudável que é feita entre o governo e o Legislativo. Mesmo com maioria no Congresso, Trump prefere legislar por decreto. Isso diz muito.

A resposta institucional a essa escalada tem sido lenta, quando não inexistente. A própria Suprema Corte norte-americana reconheceu os riscos: “O próprio Justice Roberts se manifestou: ‘o rule of law (Estado de direito) está em perigo’” (Luciana Bauer). O alerta é grave. O império da lei, pilar da democracia liberal, está sendo minado por dentro também por ataques diretos à legitimidade dos juízes. Quando três Juízes técnicos da comissão de comércio internacional dos EUA se posicionaram contra os tarifaços, a porta-voz da Casa Branca os acusou de serem “antiamericanos”, “de subverterem a vontade do povo” e “de estarem fazendo política”. Como Luciana Bauer pontua: “Isso é um discurso fascista de causas míticas”.

A personalização da política, a mitificação da vontade do líder e o descrédito das instituições técnicas formam o tripé do populismo autoritário. Não é apenas a política que se militariza, é a legalidade que se submete ao carisma do chefe. “Não é mais a vontade da lei, é a vontade do soberano”, diz Gisele Agnelli. “Esse tipo de discurso é central na construção do mito, como explica Umberto Eco. Ele deslegitima qualquer freio institucional em nome de uma suposta voz do povo, que no fundo é a voz do líder”.

Esse cenário ressoa no Brasil. A criminalização do ministro Alexandre de Moraes, feita a partir de processos movidos em tribunais de Trump, mobiliza os mesmos instrumentos discursivos: a denúncia de uma suposta “ditadura do Judiciário”, o uso da liberdade de expressão como escudo para o discurso de ódio, e a acusação de censura contra medidas de moderação de conteúdo. “O que está acontecendo com Alexandre de Moraes é parte da mesma engrenagem. Demonizar o Judiciário para naturalizar a exceção. Como se o juiz se tornasse o problema por aplicar a Constituição”, afirma Gisele Agnelli.

A proposta de subordinar a segurança dos juízes federais à Suprema Corte norte-americana é um sinal inequívoco de ruptura institucional. Hoje, a segurança desses magistrados está sob responsabilidade do Departamento de Justiça, totalmente capturado pelo trumpismo. “É um Estado que não confia em si mesmo. Os juízes estão com medo real. Não é um Judiciário acovardado, é um Judiciário vulnerável”. (Luciana Bauer)

Esse medo institucional se estende à academia. Professores têm sido alvo de lawfare promovido por ONGs alinhadas ao governo. O caso de uma professora de Direito Ambiental, perseguida por fazer perícia judicial com base científica, foi emblemático. “Ela ganhou agora o prêmio da APSA de melhor professora de Direito Ambiental. Foi uma votação clara de que os professores veem nela uma vítima e um mártir disso tudo”, explica Luciana Bauer.

Esse ataque sistemático às universidades, aos juízes, às ONGs e à imprensa não é fortuito. É parte de um fascismo algorítmico contemporâneo que combina excepcionalidade jurídica, tecnopolítica e violência simbólica (discurso do ódio). Estamos diante de um novo tipo de fascismo, não mais com tanques, mas com algoritmos. Não mais com campos de extermínio, mas com leis distorcidas, orçamentos armados, redes intoxicadas e juízes acuados.

Trump governa para as Big Techs porque nelas reside o poder de disseminação da desinformação que alimenta o fascismo. A suspensão da legislação europeia sobre regulação de plataformas em troca de acordos comerciais é reveladora: “As tarifas viraram chantagem para evitar regulação. As big techs têm mais poder político que os próprios Estados”, diz Luciana Bauer. “Elas protegem o grande capital e o fascismo nascente, e quem sabe vitorioso, de Trump”.

No Brasil, o ataque a Moraes se explica por essa lógica. Ele tocou em interesses políticos e econômicos globais. “Pisou nos interesses das big techs e no interesse político do Trump de manter essa massa de manobra de extrema direita nos países. É do interesse dele ter países aliados subservientes, Eduardo Bolsonado é somente o idiota útil neste imbróglio Brasil/ USA, Rumble/X”, conclui Gisele Agnelli.

Diante desse cenário, perguntamo-nos: até onde irá a conivência institucional com a ilegalidade? A classe média norte-americana, hoje iludida com deportações em massa e promessas econômicas, perceberá o custo de um governo que age abertamente fora da lei? “Nunca se viu isso como está acontecendo hoje nos USA: alguém que, à luz do dia, desrespeita ordens judiciais, age com corrupção explícita nas criptomoedas, desafia abertamente o império da lei e ainda assim mantém apoio”, afirma Gisele Agnelli.

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Last Update: 02/06/2025