A Argentina na estrada para servidão

por Nico Acosta

“Não pode haver tolerância para com democratas e comunistas em uma ordem social libertária. Eles terão de ser fisicamente separados e expulsos da sociedade. Da mesma forma, em um pacto fundado com o propósito de proteger a família e os laços de sangue, não pode haver tolerância para com aqueles que promovem habitualmente estilos de vida incompatíveis com esse objetivo. Eles — os defensores de estilos de vida alternativos, não centrados na família e nos laços de sangue, como, por exemplo, hedonismo individual, parasitismo, adoração da natureza e do meio ambiente, homossexualidade ou comunismo — também terão de ser fisicamente removidos da sociedade, caso se deseje manter uma ordem libertária.”

Hans-Hermann Hoppe, Democracy: The God That Failed.


Introdução

Desde sua ascensão à presidência, Javier Milei tem implementado uma série de medidas que transformam radicalmente a arquitetura institucional do Estado argentino. Entre elas, destacam-se a centralização de dados biométricos, o uso de inteligência artificial para vigilância preditiva, a criminalização do dissenso político nas redes sociais e a proposta de monitoramento escolar ideológico. À primeira vista, tais práticas contrastam com a retórica libertária frequentemente invocada por Milei, baseada na liberdade individual e na limitação do Estado. Como nos alertava Friedrich Hayek, a liberdade depende de uma ordem espontânea descentralizada, incompatível com mecanismos de controle coercitivo sobre a informação e o comportamento.

Entretanto, um exame mais atento revela que esse paradoxo é apenas aparente. A estrutura repressiva do governo Milei encontra respaldo em vertentes libertárias mais radicais, como a proposta de Hans-Hermann Hoppe, que defende a exclusão sistemática de indivíduos considerados incompatíveis com os valores dominantes de uma comunidade proprietária. Além disso, as medidas adotadas por Milei dialogam diretamente com os interesses de grandes corporações tecnológicas — as Big Techs — cujas práticas de vigilância, modelagem comportamental e engenharia social se tornaram pilares de uma ideologia neoliberal autoritária em escala global.

Este ensaio examina essas contradições e convergências, articulando os conceitos de ordem espontânea e ordem natural a partir das obras de Hayek e Hoppe, e situando o experimento argentino no contexto mais amplo da tecnopolítica contemporânea.

1. A Ordem Espontânea e a Liberdade na Tradição Hayekiana

Para Hayek, a sociedade livre depende da coordenação descentralizada do conhecimento disperso entre os indivíduos. Esse conhecimento, muitas vezes tácito e localizado, não pode ser agregado por um planejador central. A ordem emerge, portanto, da interação entre agentes livres, mediados por normas abstratas como o direito, a moralidade e o mercado (The Use of Knowledge in Society, 1945).

A liberdade, nesse modelo, é condição para a descoberta social e institucional. O Estado de Direito é essencial, mas deve ser impessoal e restrito a regras gerais e previsíveis. Hayek rejeita tanto o planejamento central quanto a moralização coercitiva da sociedade. Como ele escreve: “A pior tirania pode ser exercida por pessoas com convicções sinceras que acreditam estar fazendo o bem […] É a negação da liberdade em nome de uma autoridade benevolente que abre caminho para o totalitarismo.” (The Road to Serfdom, 1944)


2. A Ordem Natural de Hoppe: Liberdade como Exclusão

O economista austríaco Hans-Hermann Hoppe, em Democracy: The God That Failed (2001), propõe um modelo de sociedade libertária radical fundamentado na propriedade privada absoluta e na exclusão sistemática de todos os indivíduos ou grupos que representem, segundo seu critério, uma ameaça à moralidade tradicional ou à ordem comunitária proprietária. Em uma de suas passagens mais controversas, Hoppe argumenta que, em contraste com a sociedade liberal moderna, uma ordem social libertária coerente seria profundamente desigual, intolerante e discriminatória. Ele escreve:

“Se apenas cidades e vilarejos pudessem e quisessem fazer o que era habitual até bem dentro do século XIX na Europa e nos Estados Unidos, haveria placas indicando os requisitos de entrada na cidade e, uma vez dentro, exigências específicas para acessar propriedades (por exemplo: sem mendigos, vagabundos ou sem-teto, mas também sem homossexuais, usuários de drogas, judeus, muçulmanos, alemães ou zulus), e aqueles que não atendessem a esses critérios seriam expulsos como invasores. Quase instantaneamente, a normalidade cultural e moral se restabeleceria.”

Tal concepção de liberdade — limitada àqueles que se adequam moral e ideologicamente a um ideal conservador e comunitário — colide frontalmente com a tradição liberal clássica e expõe as dimensões autoritárias embutidas em certos projetos libertários contemporâneos.


3. Milei: Totalitarismo Digital sob a Rótulo da Liberdade e os Interesses das Big Techs

O governo Milei incorpora aspectos centrais da teoria de Hoppe, ainda que de forma não declarada. A implantação de mecanismos de vigilância algorítmica para prever “crimes futuros”; a criminalização do dissenso político, econômico e moral, o policiamento do pensamento no estilo orwelliano; e o desmonte de canais de participação plural criam uma arquitetura de controle incompatível com a ordem espontânea defendida por Hayek. Essa infraestrutura tecnopolítica não se dá de forma isolada: ela está profundamente articulada com os interesses e a influência das Big Techs, cuja lógica operacional e ideológica muitas vezes ecoa preceitos libertários radicais. Empresas como Google, Meta, X (antigo Twitter) e Palantir têm histórico de defesa de ambientes desregulamentados e de proximidade com ideias de liberdade de expressão irrestrita, autorresponsabilidade individual e redução do papel do Estado. Ao mesmo tempo, muitas dessas corporações operam com algoritmos de vigilância, modelagem comportamental e exclusão preditiva que tornam-se instrumentos ideais para governos com agendas repressivas. Em Milei, as Big Techs encontram não apenas um parceiro comercial, mas um aliado ideológico que mistura neoliberalismo, autoritarismo algorítmico e exclusão social sob o signo da “liberdade”.

À luz da análise foucaultiana, tais medidas não devem ser compreendidas apenas como instrumentos externos de coerção, mas como mecanismos internos de produção de subjetividades e normalização social. Em Vigiar e Punir, Michel Foucault descreve a passagem do poder soberano para formas de biopoder e governamentalidade, nas quais o controle é exercido não apenas pela repressão direta, mas por tecnologias de vigilância contínua, avaliação permanente e gestão de condutas. O governo Milei adota, nesse sentido, um modelo de governo que reorganiza a sociedade em torno de dispositivos disciplinares e securitários. A criminalização do dissenso, a predição algorítmica de comportamentos desviantes e a vigilância comportamental em massa não são acidentes de percurso, mas técnicas racionais de governamentalidade neoliberal. Assim, o que se constitui é uma sociedade de controle — ou melhor, uma sociedade de governo algorítmico — em que a liberdade proclamada se converte em interiorização do medo, autocensura e conformismo performático.

Complementando a análise foucaultiana, o filósofo Gilles Deleuze propôs o conceito de “sociedade de controle”, em que os mecanismos disciplinares descritos por Foucault se deslocam para formas contínuas de modulação digital. O poder já não se exerce por meio de instituições fixas como prisões ou escolas, mas através de redes de informação e dispositivos móveis que operam em tempo real. As políticas de Milei, ao integrar algoritmos preditivos e vigilância massiva aos processos de gestão social, atualizam essa forma de poder fluido e invasivo, transformando o Estado argentino em um laboratório de controle descentralizado e contínuo.

Shoshana Zuboff, em sua teoria do “capitalismo de vigilância”, oferece ainda outro ângulo para entender o fenômeno. Para ela, a coleta massiva de dados não visa apenas o lucro, mas o controle comportamental, a antecipação de decisões e a manipulação de escolhas. O alinhamento de Milei com plataformas como Palantir e X reforça essa lógica, evidenciando que o autoritarismo algorítmico não é um desvio do neoliberalismo — mas uma de suas formas mais avançadas.

Esse alinhamento não é acidental. Diversos estudos recentes apontam para uma guinada ideológica conservadora no setor tecnológico. O fenômeno é marcado por uma retórica de oposição ao “politicamente correto”, resistência à regulação estatal e promoção de uma visão tecnocrática e hierárquica de ordem social — valores que convergem com o libertarismo radical e neoliberalismo autoritário, mas que na prática sustentam formas sutis (e às vezes explícitas) de exclusão, vigilância e despolitização. Figuras como Peter Thiel, Elon Musk e Marc Andreessen representam a face visível desse novo tecnopopulismo reacionário, defendendo abertamente a superioridade da racionalidade empresarial sobre os processos democráticos. Think tanks libertários como o Cato Institute, o Mises Institute e fundos como o Seasteading Institute articulam projetos de governança algorítmica privada, pós-Estado e pós-direitos, promovendo modelos que já influenciam o discurso político em Silicon Valley e encontraram eco no governo Milei. Plataformas como X (ex-Twitter), Palantir e outras startups de IA foram estruturadas com base nessa ideologia, favorecendo ambientes onde a liberdade é reduzida à não-interferência sobre elites técnicas e econômicas, e o poder é exercido por meio da coleta, predição e gestão de dados. Ao aderir a esse projeto, Milei não apenas instrumentaliza o aparato digital repressivo, mas torna-se expressão local de uma ideologia global que busca substituir a deliberação democrática pela engenharia social algorítmica.

Conclusão

A experiência argentina sob Javier Milei representa uma das manifestações mais radicais e perigosas de um projeto político que funde neoliberalismo, autoritarismo algorítmico e exclusão social em escala estatal. O que está em curso na Argentina não é apenas uma série de reformas econômicas ou ajustes administrativos: trata-se da tentativa de instaurar um novo paradigma de governança baseado na vigilância contínua, na criminalização do dissenso e na submissão da política aos imperativos da tecnocracia de mercado. O governo Milei converte o discurso da liberdade em uma máquina de controle comportamental e repressão ideológica, onde a liberdade proclamada serve para justificar a censura, a perseguição e o silenciamento. Trata-se de uma distopia agressivamente privatista, que se propõe a exterminar qualquer vestígio de solidariedade coletiva, diversidade política ou livre pensamento. A Argentina torna-se, assim, um laboratório de experimentação global do totalitarismo digital de viés libertário — uma distorção grotesca das ideias de Hayek, uma realização prática das propostas excludentes de Hoppe e uma extensão local das ambições globais das Big Techs.

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Last Update: 02/06/2025