O conforto psíquico no profundamente humano da arte de John Cazale
por Luiz Henrique Lima Faria
Poucos dias atrás, assisti a mais um daqueles espetáculos degradantes encenados pelo pior plantel de congressistas surgido no Brasil desde o fim da ditadura. Em sessão aberta de uma comissão parlamentar de inquérito, via-se a cena vergonhosa de uma subcelebridade milionária e desmiolada da internet sendo tratada com desmedida leniência por um senador analfabeto funcional, incapaz de articular sequer uma frase que preservasse traços mínimos de dignidade institucional. Desliguei a TV como quem cobre os olhos em horror diante de uma paisagem tóxica e busquei algo que limpasse da minha memória aquele escoamento brutal de chorume antiético.
Foi então que reencontrei, pela força da memória que me acudiu como forma de proteção contra a agressão psíquica recente, o abrigo emocional oferecido por uma das trajetórias artísticas mais discretas e belas da história do cinema. Lembrei de John Cazale, cuja filmografia breve e precisa construiu, sem pretensão e sem holofotes, uma cinebiografia profundamente humana. Sua arte, feita de gestos contidos e palavras bem colocadas, contrastava com a bizarrice que minutos antes eu havia presenciado. Na memória serena de Cazale, reforcei a certeza da dignidade humana como testemunho possível de vida.
John Cazale atuou em apenas cinco obras. Todos elas foram indicadas ao Oscar de Melhor Filme. Porém, não é esse fato que torna sua arte inesquecível. É que, em cada um desses filmes, ele deixou algo que poucos atores conseguem transmitir: uma humanidade crua, mas delicada, absolutamente despida de vaidade. Não encarnava personagens com o intuito de impressionar. Seu estilo de atuar nos levava a compreender o que é ser gente, o quanto somos frágeis, falhos, ambíguos e como é nessa tessitura que mora o que há de mais verdadeiro da vida em sua expressão social.
Em O Poderoso Chefão (1972), Cazale apresentou ao mundo Fredo Corleone, o irmão emocionalmente frágil e deslocado da dinastia mafiosa, cuja dor não nasce da ambição, mas da exclusão. Em A Conversação (1974), de Francis Ford Coppola, deu vida ao assistente inseguro de Gene Hackman, compondo um personagem de poucas palavras e presença inquieta, ampliando a atmosfera paranoica e claustrofóbica do filme. Retornou a Fredo em O Poderoso Chefão: Parte II (1974), revelando com intensidade contida a trajetória de um homem quebrado pela busca desesperada por validação. Em Um Dia de Cão (1975), ao lado de Al Pacino, interpretou Sal, o cúmplice silencioso e trágico de um assalto bancário, cuja doçura desconcertante contrastava com a tensão do enredo e o caos da situação. Por fim, em O Franco Atirador (1978), já gravemente doente, encarnou Stan, o amigo comum de um grupo de operários que, arrastado pelos efeitos da guerra, se torna símbolo de um homem comum à deriva.
De toda sua obra, destaco a composição do personagem Fredo Corleone, em O Poderoso Chefão, não representa apenas o irmão fraco e ressentido. É o retrato universal de quem deseja reconhecimento, mas não sabe como alcançá-lo sem trair os outros e a si mesmo. A cena do beijo da morte, quando Michael sussurra “Eu sei que foi você, Fredo”, talvez seja uma das mais dolorosas do cinema, porque ali não se vê apenas a condenação de uma traição. Vê-se o fim de um vínculo, a queda de um homem que nunca aprendeu a construir seu espaço social com dignidade dentro da própria família, algo que o tornou falso e amargo, mas que não o impediu de continuar querendo ser amado.
John Cazale era assim em tudo o que fazia. Um ator de silêncios, olhares e pausas que diziam mais do que monólogos inteiros. Não por acaso, foi venerado pelos maiores atores de sua geração. Al Pacino dizia que, se pudesse escolher um único ator com quem trabalhar para sempre, escolheria Cazale. Robert De Niro, ao saber da doença terminal do amigo durante as filmagens de O Franco Atirador, bancou pessoalmente o seguro para garantir sua permanência no elenco. Meryl Streep, companheira de Cazale até o último suspiro, abdicou de convites e palcos para cuidar dele. Dormia ao seu lado no hospital, lia para ele, amava-o com a intensidade de quem sabe que o tempo é curto, mas o afeto que se abriga na memória é infinito.
É impossível desaperceber o contraste abissal entre John Cazale e os caricatos personagens da cena parlamentar narrada no início desta crônica. Enquanto subcelebridades toscas se exibem em performances que apenas evidenciam sua indignidade e seu vazio existencial, Cazale seguia na direção oposta. O melhor de sua arte brotava do silêncio, da escuta, do gesto mínimo e verdadeiro. Sussurrava verdades com o corpo e com o olhar. Preferia o real à farsa, a exposição do humano à curiosidade gerada pelo escárnio. Sua atuação não buscava reconhecimento efêmero, mas dar sentido ao enredo.
Encerrando minhas impressões, digo que, em tempos de indigência ética e estética, quando os palcos de maior audiência são ocupados por personagens parvos e encenações grotescas, lembrar da arte de John Cazale e de outros de seu quilate talvez não seja apenas um gesto de alívio, mas um ato de resiliência e resgate. É como abrir a janela após longo tempo em um ambiente irrespirável e, com os pulmões quase em colapso, reencontrar o ar fresco de uma expressão que não precisa de artifícios para ser inesquecível. Assim, a arte e a vida de um verdadeiro artista nos recordam que ainda é possível viver e legar ao mundo dignidade, mesmo nesses dias de execrável feiura.
Luiz Henrique Lima Faria – Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) e Editor-Chefe da Revista Interdisciplinar de Pesquisas Aplicadas (RINTERPAP).
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