Ao menos cinco países europeus decidiram se retirar do Tratado de Ottawa, que desde 1999 proíbe o uso de minas explosivas antipessoais em conflitos armados. Polônia, Finlândia e as três nações bálticas – Estônia, Letônia e Lituânia – querem enterrar explosivos ao longo das fronteiras com a Rússia, Ucrânia e Bielorrússia. Se o plano for levado a cabo, a Europa terá nos próximos anos mais de 4 mil quilômetros de divisas potencialmente coa­lhadas de minas terrestres. A linha parte da Finlândia, no extremo norte, e desce até o ponto onde começa a Eslováquia, contornando ainda as fronteiras da Ucrânia. Em extensão, é como se o Brasil minasse de Porto Alegre ao Recife.

Esse seria um dos maiores retrocessos em décadas no direito internacional dos conflitos armados, de acordo com organizações humanitárias ouvidas por ­CartaCapital. Seus representantes dizem que a colocação de minas terrestres terá como principal consequência a morte e a mutilação das populações civis na extensa região de fronteira. Além disso, seria uma estratégia de eficácia militar questionável. “Campos minados dificilmente atrasariam uma invasão russa e não teriam impacto em ataques aéreos ou navais”, afirma Jeff Abramson, ex-chefe do Landmine and Cluster ­Munition Forum e, atualmente, um dos diretores do Forum on the Arms Trade. “Os civis é que arcariam com o peso dos custos humanitários indiscriminados.”

Os dados comprovam a afirmação. Dois anos atrás, 84% das vítimas de minas terrestres no mundo foram civis, dos quais 37% eram crianças, segundo dados do Landmine Monitor, documento de referência desse setor. Isso ocorre porque as minas seguem enterradas sob o solo em diversas partes do mundo, mesmo muitos anos depois de os conflitos terem terminado. Como explodem com o peso de um corpo humano, podem matar ou mutilar qualquer um que pise sobre elas, o que inviabiliza economicamente extensas áreas, antes usadas para agricultura, pecuária, turismo e comércio, provocando graves impactos ao longo de décadas.

Em muitos casos, as Forças Armadas até mantêm mapas com a localização das próprias minas, mas elas podem deslocar-se ao longo do tempo, em razão de fortes chuvas ou movimentos de terra. Além disso, as sinalizações podem perder-se e o caos provocado por uma crise tende simplesmente a apagar dados de mapeamento. “Tudo o que puder fortalecer a defesa da Polônia será implementado. Usaremos todas as opções disponíveis”, avisou o primeiro-ministro da Polônia, Donald Tusk, alheio aos alertas do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, que, em 4 de abril, aprovou por unanimidade uma resolução contrária a essa opção. O documento da ONU não pode ser imposto à força aos cinco países europeus que ensaiam deixar o tratado, mas envia um forte sinal de ­desaprovação de parte de 47 países que ocupam assentos rotativos no Conselho.

Os explosivos seriam espalhados por mais de 4 mil quilômetros

O Tratado de Ottawa tem a participação de 165 países do mundo, mas EUA, China, Rússia e Coreia do Norte estão entre aqueles que não fazem parte. Os norte-americanos são um duplo motivo de preocupação: primeiro, por exportarem minas para a Ucrânia. O país, governado por Volodymyr Zelensky, é parte do tratado e, como tal, não poderia ter recebido a encomenda, mas ignorou as obrigações. “Eles nos pediram. Então, acho que é uma boa ideia”, justificou o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, em novembro de 2024. O segundo motivo é o fato de Donald Trump ter cortado as verbas dos programas usados em várias partes do mundo para fazer desminagens humanitárias e campanhas informativas com crianças que vivem em áreas infestadas de minas, além de subvencionar programas de reabilitação para civis e militares amputados de guerra.

Cada gesto contra o Tratado de ­Ottawa enfraquece a ideia de um mundo coeso contra as minas. Até agora, o gesto mais expressivo foi o da Letônia, cujo Parlamento aprovou a saída do tratado. Se os outros quatro europeus cumprirem a promessa e seguirem o mesmo caminho, a Noruega se tornará o único país da União Europeia que faz fronteira com a Rússia que não estará minado.

Sair do tratado é, no entanto, algo complexo. Após a comunicação, são necessários seis meses até a saída efetiva. Além disso, a retirada não é possível para um país que estiver em guerra quando anunciar sua decisão. Esses pressupostos talvez não sejam suficientes para impedir alguém de sair, mas, no caso da União Europeia, dariam argumentos adicionais para instâncias burocráticas e até judiciais do bloco interporem objeções. Os argumentos poderiam ainda rechear ações futuras em instâncias como o Tribunal Penal Internacional e a Corte Internacional de Justiça, caso essas instâncias fossem instadas a investigar crimes de guerra ou contra a humanidade.

O Brasil promulgou o Tratado de ­Ottawa em dezembro de 1997, durante o primeiro dos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso. “O Brasil e outras autoridades latino-americanas deveriam expressar veemente desaprovação aos seus homólogos europeus por minar aspectos-chave da arquitetura de segurança global”, disse ­Abramson. É improvável, no entanto, que isso aconteça. O presidente Lula tem feito declarações em favor da paz entre a Rússia e a Ucrânia, mas, no varejo, toma atitudes que enfraquecem o direito internacional. A principal talvez tenha sido o convite para Vladimir Putin visitar o Rio de Janeiro durante o encontro do G20, em novembro de 2024. O presidente russo tem uma ordem de prisão contra si, emitida pelo TPI. Como o Brasil é Estado-parte do Estatuto de Roma, que define as bases do tribunal, estaria obrigado a não o receber e, se o recebesse, a prendê-lo e entregá-lo. No fim, o próprio Putin recusou o convite, mas deu tempo suficiente para que o Brasil demonstrasse que o apego estrito aos ditames da lei internacional não é uma prioridade. •

Publicado na edição n° 1360 de CartaCapital, em 07 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Campo minado’

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Last Update: 30/04/2025