Reflexão crítica: 10 Anos de audiências de custódia no Brasil

por Marilha Gabriela Reverendo Garau e Natália Barroso Brandão

As audiências de custódia, implementadas no Brasil em 2015, completam esse ano uma década em meio a debates sobre sua eficácia e impacto no sistema de justiça criminal. Criadas para garantir direitos fundamentais, avaliar a legalidade das prisões e investigar abusos como tortura e maus-tratos, as audiências de custódia representam um avanço teórico, mas enfrentam desafios práticos que limitam seu potencial transformador, revelando a permanência de práticas institucionais anteriores à sua implementação.

Recentemente o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou dados sobre os resultados dos últimos dez anos das audiências de custódia. Nesta reflexão adotamos uma abordagem metodológica que analisa tais dados à luz das pesquisas empíricas que estamos desenvolvendo no âmbito do sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro desde a implementação do instituto. O diálogo permite uma compreensão mais aprofundada das práticas institucionais e limitações objetivas que permeiam as audiências, ao confrontar tendências nacionais com as dinâmicas observadas localmente.

O propósito original das audiências de custódia

As audiências foram concebidas como um mecanismo para reduzir abusos policiais, combater a tortura e evitar o encarceramento excessivo. A implementação do protocolo processual está alinhado com pactos internacionais, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto de San José da Costa Rica, ambos ratificados pelo Brasil em 1992. A Resolução 213/2015 do CNJ regulamentou sua realização, estabelecendo que toda pessoa presa em flagrante ou por cumprimento de mandado de prisão deve ser apresentada imediatamente a um juiz para análise da prisão e possíveis abusos.

Na prática, a maioria dos casos apresentados em audiência de custódia se dão por ocasião de flagrante delito, envolvendo crimes de drogas e crimes contra o patrimônio. Esse dado sistêmico aparece como uma característica de práticas institucionais tradicionais, posto que a maior parte dos casos que ingressam no sistema de justiça criminal não são objeto de investigação senão resultado da atuação da Polícia Militar em sua atividade ostensiva, resultando, inevitavelmente, na produção massiva de flagrantes. 

O impacto prático: dados reveladores

Ao longo dos últimos 10 anos, mais de 2 milhões de audiências de custódia foram realizadas no país. No entanto, recente pesquisa divulgada pelo CNJ mostra que em 59% dos casos a prisão preventiva foi mantida, enquanto apenas 41% dos custodiados obtiveram liberdade provisória. Casos de prisão domiciliar representaram apenas 0,3% das decisões. No Rio de Janeiro, os dados revelam-se ainda menos animadores, tendo em vista que apenas 1 em cada 3 presos apresentados em audiência de custódia, alcançaram liberdade provisória ou relaxamento da prisão. A nível nacional, os relatos de tortura ou maus-tratos foram registrados em apenas 7% das audiências (152 mil casos), sugerindo que o mecanismo não tem sido suficientemente eficaz na apuração de abusos policiais. 

O perfil dos custodiados coincide com o perfil da população encarcerada, de forma geral: homens cisgênero (84%) e sem vínculo formal de emprego. Ainda que os dados sobre raça, estado civil e escolaridade não estejam disponíveis para mais de 50% dos casos, é possível inferir que os custodiados, em sua maioria, são não brancos (pretos ou pardos), solteiros e com ensino fundamental incompleto.

Em relação aos tipos penais, prevalece o crime de tráfico de drogas (24%), seguido do crime de furto (13%), violência doméstica (7%), posse, porte, disparo e comércio ilegal de armas (6%) e infrações relacionadas ao Código Nacional de Trânsito (5%). Nota-se que os tipos penais de maior incidência dizem respeito a crimes cometidos sem violência ou grave ameaça e que, portanto, caberia a implementação de medidas cautelares diversas da prisão, como por exemplo o monitoramento eletrônico ou a prisão domiciliar. No entanto, os dados revelam que ainda há resistência por parte dos julgadores em privilegiar medidas alternativas na porta de entrada do sistema criminal.

Persistência da Lógica Inquisitorial pela padronização das decisões 

Apesar do avanço formal representado pelas audiências de custódia, o protocolo processual ainda reproduz aspectos do modelo inquisitorial ao privilegiar um formato que parte da presunção de culpabilidade do réu que, por sua vez, é sistematicamente excluído do processo de produção de verdade, ficando à mercê da decisão do julgador sem que lhe seja oportunizado o direito ao contraditório. 

Um dos principais desafios das audiências de custódia é a padronização das decisões judiciais que parte inevitavelmente da prevalência da versão documentada no Auto de Prisão em Flagrante, documento produzido pela Polícia Civil. A questão chama atenção posto que quando da implementação das audiências de custódia acreditava-se que o protocolo teria potencial de evitar erros judiciários, pela apresentação do acusado ao juiz.

Porém, na prática, não há oportunidade para que os acautelados apresentem versões sobre os fatos que ensejaram sua prisão, prevalecendo a presunção de veracidade do registro feito em sede policial. Durante essas audiências, o custodiado e sua defesa devem se ater aos fatos relacionados ao ato da prisão, não podendo “entrar no mérito”, negando a oportunidade de apresentar elementos que coloquem sob questionamento a narrativa dos policiais e a dinâmica dos fatos apresentados.

Por conta dessa máxima que rege o curso processual penal desde o ingresso dos fatos no sistema de justiça criminal, em muitos casos, as decisões são tomadas com base em modelos pré-estabelecidos antes mesmo da análise concreta dos fatos apresentados, considerando principalmente a tipificação penal abstratamente apresentada. Além disso, é possível perceber que há uma tendência de que a prisão decretada durante a audiência de custódia seja  mantida pelos juízes que julgarão o fato durante todo o curso da ação penal, reforçando o caráter inquisitorial da decisão. 

Essa prática burocrática transforma as audiências em um ato meramente formal, pelo qual a presunção de culpabilidade do réu prevalece sobre uma análise individualizada. Crimes patrimoniais e relacionados às drogas são especialmente afetados por essa lógica, sendo tratados como categorias homogêneas que justificam a manutenção da prisão preventiva pelo argumento fluido da “garantia da ordem pública”.

O cenário reflete uma abordagem automatizada que prioriza o encarceramento como regra, frequentemente ignorando as especificidades de cada caso, reforçando práticas punitivistas. Além disso, há uma exclusão discursiva evidente: as narrativas dos réus são sistematicamente desacreditadas ou desconsideradas, enquanto os relatos produzidos por agentes estatais gozam de presunção de veracidade. Para além da interpretação sobre a necessidade de prisão unicamente à luz da classificação penal, a tomada das versões originais como presumidamente verdadeiras somada à impossibilidade de produzir versões outras sobre os fatos, prejudica a concepção de todo o contexto que ensejou a prisão, limitando ainda mais a apuração de violência ou tortura policial.

Ao contrário daquilo que se pretende do ponto de vista do dever ser, a fase processual que se apresenta como uma garantia fundamental, destaca-se empiricamente como uma ferramenta de manutenção da presunção de culpabilidade do réu, dessa vez com o crivo do judiciário na porta de entrada. Isso porque a decisão sobre a manutenção da prisão do acusado reitera a presunção de veracidade da fase inquisitorial, seja para garantir a privação da liberdade no curso processual, seja para evitar/dificultar a apuração de abusos e/ou excessos cometidos no momento da prisão. 

A questão da tortura e violência policial

Embora as audiências tenham potencial para combater práticas abusivas durante prisões, os resultados são limitados. Conforme observado em nossas pesquisas etnográficas, muitos presos não têm oportunidade para denunciar abusos sofridos já que são impedidos de falar nas audiências sob o argumento de que o protocolo processual não se presta à discussão de fatos; e, ainda quando o fazem, têm suas versões desconsideradas na tomada de decisão. Interessante observar que mesmo nas menos frequentes situações em que os casos chegam a ser encaminhados para investigação, ainda assim, a prisão é mantida, sem que haja o reconhecimento da sua ilegalidade.

Nas audiências de custódia, é comum observar que relatos de tortura ou violência policial são recebidos com ceticismo. Mesmo quando há denúncias claras de abusos, a prisão raramente é relaxada; na maioria dos casos, os juízes apenas encaminham os relatos à corregedoria policial ou ignoram as denúncias. Essa postura revela uma resistência institucional em responsabilizar agentes estatais por abusos e priorizar os direitos humanos. Ainda quando há o encaminhamento dos relatos de agressões e tortura ao órgão responsável pela averiguação, é rara a responsabilização dos agentes.

Além disso, existe uma hierarquia discursiva que valoriza determinados capitais sociais na construção da defesa. Ocupações formais, residência em áreas privilegiadas e ausência de antecedentes criminais são elementos que influenciam diretamente a credibilidade das narrativas apresentadas pelos réus. Por outro lado, populações vulneráveis – especialmente negras e periféricas – enfrentam estigmas que reforçam sua exclusão do sistema judicial. No Rio de Janeiro, por exemplo, é possível observar uma sistemática criminalização do território, uma vez que o crime de tráfico de drogas é automaticamente relacionado à associação criminosa a depender da localidade que este ocorreu, sob o argumento de que a presença de grupos criminosos organizados impede a prática do crime de forma isolada.

Nesse sentido, apesar das audiências de custódia terem contribuído para a redução de prisões provisórias em alguns contextos, os dados apresentados ao longo desta reflexão evidenciam que a maioria das decisões ainda privilegia o encarceramento em detrimento da implementação de medidas cautelares, mesmo em casos cuja aplicação de tais medidas estaria de acordo com a previsão normativa. A opção pela prisão preventiva é muitas vezes justificada de forma abstrata, fundamentada pela “garantia da ordem pública”, “conveniência da instrução criminal” ou “garantia da ordem econômica”. A aplicação de medidas diversas à prisão é compreendida, na prática, não como um direito dos custodiados, mas como um privilégio a ser concedido a depender da situação e, principalmente, da pessoa do custodiado.

Os relatos de tortura e abusos, por sua vez, são frequentemente ignorados ou tratados com ceticismo. A violência descrita pelos custodiados, muitas vezes não é compreendida como tal pelos operadores do direito, que a entendem como algo necessário e inerente à prisão. Essa realidade reflete a persistência de uma lógica inquisitorial que exclui os acautelados do processo de produção de verdade judiciária, priorizando a versão apresentada no Auto de Prisão em Flagrante. 

Deste modo, embora as audiências de custódia representarem um marco na humanização do processo penal brasileiro, sua eficácia depende de mudanças estruturais do sistema de justiça criminal, já que além de não verificar de forma efetiva a legalidade da prisão, as práticas institucionais do sistema de justiça criminal no momento das audiências de custódia subvertem a lógica das garantias fundamentais, reproduzindo desigualdades jurídicas históricas.  É essencial, portanto, investir na capacitação dos atores do sistema de justiça, adotar medidas alternativas à prisão e fortalecer mecanismos de apuração de abusos, consolidando as audiências como instrumento efetivo de proteção aos direitos humanos, da cidadania e dignidade da pessoa presa.

Marilha Gabriela Garau é pesquisadora de pós-doutorado (PDR10-Faperj). Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais (UFF). Professora e pesquisadora vinculada ao INCT-InEAC.

Natália Barroso Brandão é pesquisadora de pós-doutorado (CAPES). Doutora em Antropologia (UFF) e pesquisadora vinculada ao INCT-InEAC.

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Last Update: 18/04/2025