O contrassenso é evidente em um país que vê a violência urbana recrudescer a cada ano, mas o cálculo político sempre fala mais alto. Na esteira da decisão tomada em 20 de fevereiro pelo Supremo Tribunal Federal, que considerou constitucional a atuação das guardas municipais em ações de policiamento ostensivo, preventivo e comunitário, diversas prefeituras estão readequando ou acelerando junto às respectivas Câmaras Municipais seus projetos de criação de uma polícia para chamar de sua. Protagonizado por prefeitos com ambições políticas estaduais e até mesmo nacionais – casos, por exemplo, de Eduardo Paes (Rio de Janeiro), Ricardo Nunes (São Paulo) e João Campos (Recife) –, o movimento atende aos anseios da população por mais segurança, mas esbarra em uma série de questionamentos jurídicos, políticos, sociais e trabalhistas.
“O reconhecimento pelo STF faz justiça, porque as guardas municipais já atuam nessas atividades há mais de 30 anos. A decisão pacifica qualquer questionamento sobre o trabalho exercido e dá segurança jurídica para que os prefeitos possam investir mais”, afirma Reinaldo Monteiro, presidente da Associação Nacional de Guardas Municipais (AGM Brasil). No entanto, a questão não está totalmente pacificada. A entidade protocolou no Supremo a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7717, que pede a regulamentação das normas sobre o uso de armas de fogo pelos agentes municipais – entre elas, o fim dos testes psicológicos realizados pela Polícia Federal.
“Queremos garantir a prerrogativa de as guardas municipais portarem suas armas nas mesmas condições das demais forças de segurança, eliminando as exigências da PF que não estão previstas no Estatuto do Desarmamento. O STF definiu que as guardas são órgãos policiais e, como os demais, assim devem ser tratadas”, defende Monteiro.
Uma nova ação propõe que os agentes tenham acesso a armas sem passar por avaliação da PF
Não prevista na Constituição, a utilização do nome “polícia” pelas forças municipais poderá ser alvo de questionamentos na Justiça. “Essa decisão do Supremo tem condicionalidade duvidosa e acredito que será modificada no futuro”, avalia Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo e colunista de CartaCapital. O advogado ressalta que a Carta de 1988 determina que somente a União e os estados podem ter forças de segurança pública. “Às guardas municipais cabe, fundamentalmente, a função de vigilância do patrimônio público, como praças, sedes e edifícios dos serviços municipais. Trata-se de uma atividade semelhante à da segurança privada e, portanto, não poderia ser classificada como segurança pública”, argumenta Serrano.
Coordenador do Grupo Prerrogativas, o advogado Bruno Salles Ribeiro ressalta que a questão vai além de uma simples discussão sobre nomenclatura. “O STF decidiu que as guardas municipais integram o Sistema de Segurança Pública. Portanto, sejam chamadas de polícia ou não, elas exercerão funções muito semelhantes. Após a decisão do Supremo, que autorizou o patrulhamento ostensivo e a realização de prisões em flagrante, na prática, atuarão como forças policiais”, afirma o criminalista.
Existe um clamor social para que as guardas municipais se tornem forças policiais, mas a decisão do STF legitima uma distorção da concepção original, alerta Ribeiro: “Na arquitetura constitucional, sua função era proteger os bens públicos do município. Com o tempo, houve um desvirtuamento, e elas passaram a atuar como polícia”. O advogado destaca que, em São Paulo, há particularidades. No fim da ditadura, muitos policiais civis e militares foram desligados por má conduta, e diversos deles migraram para a Guarda Civil Metropolitana. “Há um histórico na capital de uma guarda fortemente vinculada à polícia. Seus comandantes costumam ser coronéis da Polícia Militar. Trata-se de uma força que, em tese, nem precisaria ser armada para cumprir sua função original, mas que acabou se consolidando, na prática, como uma entidade policial.”

Projeto na Câmara Municipal de Goiânia pretende rebatizar a CGM como “Polícia Metropolitana” – Imagem: Prefeitura de Goiânia/GCM-GO
A AGM Brasil defende que as guardas municipais mantenham sua denominação oficial, mas passem a incluir a palavra “Polícia” em viaturas e uniformes, “apenas para facilitar o entendimento da sociedade de que se trata de um órgão policial”. Um projeto com essa proposta foi apresentado pela entidade em Barueri, na Grande São Paulo, para prefeituras que integram o Consórcio Metropolitano Oeste. “As guardas precisam ser reconhecidas pela população como forças policiais. Iniciativas semelhantes já foram levadas às Assembleias Legislativas de São Paulo, Rio Grande do Sul e Espírito Santo”, afirma Monteiro.
O presidente da associação nacional afirma que as regras da Polícia Federal dificultam o porte de arma de fogo, tanto funcional quanto particular, para as guardas municipais. “Cada superintendência da PF edita sua própria instrução normativa ou portaria, resultando em interpretações diversas. Isso cria obstáculos e, em alguns casos, até inviabiliza o devido armamento de toda uma corporação”, critica Monteiro. Com a ADI, a categoria espera reverter o que considera uma ilegalidade. “Em tese, um órgão de segurança pública não deveria fiscalizar outro. Essa atribuição cabe ao Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Nacional de Segurança Pública, e ao Ministério Público”, defende.
Coordenadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Juliana Martins considera “muito positivo” que os guardas municipais sejam obrigados a passar por avaliação psicológica a cada dois anos, com um profissional credenciado pela Polícia Federal, para o porte de arma de fogo. Segundo a especialista, “armar, em si, não é um problema”, mas o que preocupa é o uso da decisão do STF como pretexto para mudanças precipitadas. “Precisamos estar atentos a esse movimento em que prefeitos propõem imediatamente – e as Câmaras de Vereadores aprovam – a troca do nome de guarda municipal para polícia. É temeroso que cada prefeito tenha sua própria força policial. Não dá para criar guardas pretorianas. Isso é um retrocesso, não o avanço que precisamos no campo da segurança pública urbana.”
Nos últimos anos, houve forte expansão das Guardas Municipais. O efetivo das PMs diminuiu
Segundo Martins, há uma tendência de novas organizações de segurança pública mimetizarem as que já existem há mais tempo, como ocorreu com as guardas municipais em relação às polícias militares. “Antes do Estatuto Geral de 2014, não era raro que essas guardas fossem comandadas por coronéis da reserva e tivessem sua formação conduzida por policiais militares ou civis, incorporando aspectos identitários dessas corporações”, explica. Para a especialista, as guardas municipais devem construir uma identidade própria. “Elas têm o potencial de atuar onde as polícias não chegam, especialmente na prevenção. No entanto, esse campo ainda é muito difuso. Muitos profissionais das guardas e das polícias realizam trabalhos remunerados juntos em seus períodos de folga, o que reforça essa mistura. Mudar o nome para polícia municipal, em vez de fortalecer a identidade das guardas, representa um retrocesso, pois dilui seu DNA preventivo e comunitário”, defende.
Após a decisão do Supremo, a prefeitura de São Paulo anunciou que renomeará a Guarda Civil Metropolitana (GCM), criada em 1986, para Polícia Metropolitana. A força paulistana, que desde sua criação utiliza armas, conta atualmente com 7,5 mil agentes. O prefeito Ricardo Nunes (MDB) pretende incorporar mais 2 mil agentes de elite: “Com o respaldo do STF, fica claro para todos os órgãos e para toda a sociedade que a GCM também tem competência policial”, afirma. No entanto, o projeto enfrenta resistências na Câmara Municipal, tanto de bolsonaristas, como o vereador Rubinho Nunes (União Brasil), quanto de petistas, como a vereadora Luna Zarattini, que apresentaram substitutivos, adiando a votação do texto.
“O projeto não passa de uma jogada de marketing do prefeito. A proposta apenas muda o nome da Guarda Civil Metropolitana, sem trazer melhorias reais para os agentes ou para a segurança pública da cidade. Essa alteração simbólica não resolve o problema da violência nem fortalece a relação com a população”, critica Zarattini. O texto alternativo apresentado pelo PT prevê aposentadoria especial equiparada às demais forças policiais, além da criação de uma ouvidoria externa e independente e da adoção de câmeras corporais para todos os agentes. “São medidas essenciais para garantir controle social, transparência e o combate a abusos. Defendemos princípios que orientem a GCM para um policiamento preventivo e comunitário, priorizando a segurança nos bairros sem estimular confrontos. Mas o prefeito insiste em um projeto vazio, que só serve para bravatas.”
No Rio, o prefeito Eduardo Paes, do PSD, anunciou que, à luz das votações no Supremo, enviará à Câmara Municipal um novo projeto para a criação da Força Municipal de Segurança, uma de suas promessas de campanha. Inicialmente, a nova corporação atuaria separadamente da Guarda Municipal, mas, após reunião com vereadores da base aliada, Paes decidiu incorporar os antigos agentes à nova estrutura: “Retirei de tramitação o projeto que enviamos no início deste ano e vamos encaminhar outro à Câmara. Estamos deixando muito claro que o papel dessa nova força passa a incluir também o policiamento preventivo e ostensivo, conforme o entendimento do STF”, afirma o prefeito.

Seguindo os passos de Jair Bolsonaro e Tarcísio de Freitas, o prefeito Ricardo Nunes quer transformar a segurança pública em arma eleitoral. O STF facilitou os seus planos – Imagem: Rosinei Coutinho/STF e Paulo Guereta/Prefeitura de SP
A proposta de Paes é, porém, a que mais suscita críticas por prever a criação de uma “tropa de elite” dentro da Força Municipal de Segurança e a contratação de 4,5 mil novos agentes, em sua maioria ex-militares. A previsão salarial é de 13,3 mil reais, o dobro do que recebe hoje um guarda municipal carioca em fim de carreira. “O novo projeto continua sendo uma aberração jurídica. Paes quer fazer contratações temporárias para uma função típica de Estado. Essa pessoa tem de ser concursada, observando a Lei 13.022, que é o Estatuto Geral das Guardas Municipais”, diz Monteiro.
O vereador Leonel de Esquerda, do PT, avalia que a iniciativa será ineficaz: “A proposta de Paes reflete mais do mesmo – mais ações de guerra e menos cultura de paz. Promover sociabilidade e melhorar a organização do espaço público deveria ser a prioridade da prefeitura para, de fato, pacificar a sociedade”. O parlamentar teme que a nova força policial seja “absorvida pelo sistema de caça aos pretos e pobres” e critica o armamento dos guardas municipais: “Tenta-se apagar um incêndio com mais gasolina”. Ele também se opõe à criação de uma tropa especial: “O contrato temporário de uma elite armada demonstra que a real intenção não é avançar na segurança pública como política de Estado, mas sim fazer uma política de mandato. Será apenas um novo programa para gerar uma falsa sensação de segurança temporária em algumas bolhas sociais da cidade”.
As Guardas Civis mimetizam os vícios das forças militares, alertam especialistas
Para o cientista político Ricardo Ismael, professor da PUC Rio, a motivação eleitoral de Paes, potencial candidato ao governo do Rio em 2026, é clara: “Na eleição municipal ganhou destaque a questão da segurança pública, ainda que o governo estadual seja, segundo a Constituição Federal, o principal responsável por esta área no âmbito das políticas públicas. No entanto, ficou claro durante o processo eleitoral que a prefeitura podia fazer mais”. Além de responder a uma demanda oriunda da eleição passada, emenda Ismael, Paes procura ganhar protagonismo no debate sobre um dos pontos críticos do governo de Cláudio Castro, do PL, e que será tema obrigatório na próxima eleição estadual: “Paes vai sinalizar que somente eleito governador poderá combater o crime organizado na capital e no estado como um todo. Em outras palavras, o prefeito espera, sim, ter dividendos políticos com a criação dessa força”.
Juliana Martins considera que o caso do Rio abre um precedente perigoso: “Paes propõe investir na Guarda Municipal, mas cria uma estrutura com salários superiores, contratos temporários e sem concurso. Isso é muito arriscado, essas novas forças de segurança terão vínculos políticos diretos com os prefeitos”. A AGM Brasil prepara uma denúncia contra o prefeito carioca no Conselho Nacional do Ministério Público. “O que Paes quer criar não tem previsão constitucional e trará grandes distorções, não apenas salariais, mas também na própria atuação das guardas municipais. Além disso, abre um precedente para que outros municípios adotem modelos igualmente problemáticos”, afirma Monteiro.

O prefeito de Fortaleza, Evandro Leitão, do PT, prometeu entregar armas a todos os agentes – Imagem: Prefeitura de Fortaleza
Além das duas maiores cidades brasileiras, outras capitais também estão promovendo mudanças em suas forças de segurança, como Recife, Fortaleza, Goiânia e Curitiba. Na capital pernambucana, João Campos (PSB) anunciou que, até o fim de março, iniciará o processo de armamento da Guarda Municipal, começando com 70 agentes do Grupo Tático Especial. “Todos os agentes armados portarão também, obrigatoriamente, câmeras corporais”, enfatizou o prefeito. Em Fortaleza, o prefeito Evandro Leitão (PT) prepara um decreto para armar “progressivamente” todo o efetivo. Atualmente, uma parte dos agentes já trabalha com armas letais. “Temos armamento para todos, mas o processo será conduzido com um treinamento adequado.” Em Goiânia, também existe um projeto em tramitação na Câmara Municipal para renomear a guarda civil como “Polícia Metropolitana”, algo que o prefeito de São Paulo também quer fazer.
O crescimento das forças de segurança municipais é uma tendência. Segundo um estudo realizado pelo FBSP, o número de cidades com guardas municipais cresceu 35,7% entre 2013 e 2023. Enquanto isso, no mesmo período, houve diminuição de 6,8% no efetivo de policiais militares e de 2% entre policiais e peritos civis. Em maio, a AGM Brasil promete divulgar um levantamento dos salários pagos aos agentes em todo o País, o que ajudará a ter uma compreensão mais ampla sobre a categoria. “Precisamos de políticas de policiamento comunitário e valorização dos guardas municipais com investimentos na prevenção da criminalidade, formação dos agentes e respeito aos direitos humanos. Segurança pública se faz com inteligência, planejamento e compromisso com a população, não com medidas populistas e irresponsáveis”, emenda Luna Zarattini. •
Publicado na edição n° 1353 de CartaCapital, em 19 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Arma política’