O sistema financeiro global revela, ano após ano, as entranhas de um modelo de governança em colapso. Cada relatório econômico divulgado por organizações multilaterais, que muitas vezes representam os interesses dos arquitetos desse modelo, torna mais evidente que se trata de um mecanismo de perpetuação da fome e da miséria globais. O mais recente deles, um estudo produzido para a organização norueguesa Norwegian Church Aid, traz dados alarmantes sobre o endividamento dos países em desenvolvimento: cerca de 144 nações têm quase metade de seus orçamentos capturados para pagamentos a credores internacionais.

Como consequência, mais de dois terços desses países são obrigados a cortar gastos essenciais em saúde, educação, infraestrutura e ações de combate à crises climáticas. O atual sistema de financiamento internacional vem sufocando a capacidade dos países de executarem seus orçamentos para alavancar o desenvolvimento soberano de seus povos.

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O relatório, produzido pelo grupo Debt Relief International e divulgado recentemente pelo jornal britânico The Guardian, revela que a atual crise da dívida é a mais grave da história, superando a de 1982 na América Latina. O documento aponta que o serviço da dívida drena 41,5% das receitas orçamentárias, 41,6% das despesas e, em média, 8,4% do PIB dos 144 países listados. O Brasil aparece como “país com problema de liquidez”, fora, portanto, da lista dos países com questões de solvência.

Baque sobre os mais pobres

Em declaração ao Guardian, o secretário-geral da Norwegian Church Aid, Dagfinn Høybråten, fez um alerta: “Uma alta carga de dívida é um ônus muito grande para a economia de um país e atinge primeiro as camadas mais pobres da população, com cortes no bem-estar social, notadamente na educação e na saúde”.

“Uma crise da dívida é paralisante e mina todos os outros esforços de desenvolvimento. A crise de 1982 durou mais de 20 anos e levou a muito sofrimento antes de ser finalmente resolvida em 2005. Não temos uma geração para enfrentar uma nova crise da dívida”, advertiu, ainda, o secretário-geral.

Fundos abutres

Um dos autores do estudo, Matthew Martin, do Debt Relief International, fez um pedido ao novo governo trabalhista do Reino Unido para que impeça, por meio de mudanças na legislação, a ação dos chamados fundos abutres, que compram títulos de dívida de países vulneráveis, pagando mais barato, para depois lucrar com as aquisições.

“Agora enfrentamos a pior crise da dívida da história, em grande parte porque mais e mais países recorreram aos mercados internacionais de títulos e criaram mercados domésticos para financiar seu desenvolvimento”, lamentou Martin.

Soluções

O documento da organização aponta algumas soluções viáveis, de médio e longo prazo, não sem antes apontar para o fracasso retumbante do G20 ao tratar do tema, o chamado quadro comum, iniciativa lançada em 2020 para um “tratamento mais abrangente e sustentável da dívida dos países mais pobres”.

A ação, no entanto, esbarrou na lentidão e na burocracia que têm dado a tônica da atividade dos mais proeminentes organismos multilaterais do planeta desde a década de 40. Fóruns onde o interesse dos países ricos prevalece, de um modo ou de outro, em detrimento do mundo em desenvolvimento.

Segundo o documento, “os países ainda estariam pagando uma média de 48% de suas receitas orçamentárias em serviço da dívida após o alívio e, como resultado, poucos estavam se candidatando para aderir ao processo”.

O alívio da dívida, uma bandeira da organização, deve ser mais abrangente e ao mesmo tempo, adequado às realidades socioeconômicas. Além de ter adesão de todos os credores, o sistema também deve permitir o serviço da dívida caia para menos de 15% do orçamento, sugere o relatório.

Por último, documento recomenda que o sistema de cobrança da dívida inclua mecanismos de proteção contra fundos abutres e ações judiciais eventualmente movidas nos principais centros financeiros do mundo para prejudicar os países mais vulneráveis.

Lula: reforma da governança global é inadiável

Os dados alarmantes contidos no relatório vão de encontro ao que tem defendido o presidente Lula no G20, a partir da presidência brasileira, e mesmo antes de o comando do assento rotativo ter sido passado ao país, no início do ano. O argumento é mais do que convincente: a arquitetura financeira do planeta caiu de velha e não representa mais a atual correlação de forças da geopolítica global.

Nesta semana, durante o pré-lançamento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, o presidente Lula, cansado dos mesmos discursos de nações contaminadas pela hipocrisia, cobrou a conta dos países ricos, criticando os juros de dívidas dos países pobres e defendendo a tributação dos bilionários.

Exportação líquida de recursos

“O que vemos hoje é uma absurda exportação líquida de recursos dos países mais pobres para os países mais ricos”, discursou Lula, na quarta-feira (24), confirmando o que está descrito no relatório do Debt Relief International. “Não se pode financiar o bem-estar coletivo se a parte expressiva do orçamento é consumida com o serviço da dívida”, disparou Lula. Bingo.

No caso da tributação dos super-ricos, a aceitação por parte dos países desenvolvidos, concluída nesta semana, obviamente, não significará uma adesão imediata à iniciativa. Representa apenas o “ponto de partida”, como reconheceu o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

No Brasil, velha mídia quer chibata no lombo dos pobres

Enquanto isso, no Brasil, a velha mídia corporativa segue investindo na cantilena carcomida do neoliberalismo, exigindo que a chibata do ajuste fiscal recaia sobre o lombo dos mais pobres, como nos países endividados. Depois da saúde e da educação, alvos das últimas semanas, agora entrou na mira dos jornalões o BPC (Benefício de Prestação Continuada), pago pelo INSS. A desculpa é o pente-fino que o governo irá fazer no sistema para coibir fraudes e ampliar a transparência dos pagamentos.

“O alvo da vez são os direitos dos desempregados e de quem recebe o BPC, uma ameaça contra milhões de cidadãos”, alertou a presidenta Nacional do PT, Gleisi Hoffmann, na quinta-feira (25). “Uma coisa é combater fraudes, obrigação do governo que foi relegada no tempo do inelegível, outra bem diferente e cruel é condenar pessoas a viver abaixo do salário-mínimo”, argumentou a petista, em suas redes sociais.

“Aliás, existe fraude maior do que embolsar nos lucros desonerações que deveriam ter sido usadas para gerar empregos e fazer novos investimentos?”, indagou Gleisi. “Disso a mídia não trata, né?!”, inquiriu. De fato.

Da Redação, com informações de The Guardian e Debt Relief International

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Última Atualização: 26/07/2024