A economia digital está em pleno crescimento, mas também em plena crise de governança. O mais recente alerta da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) , divulgado em 8 de julho de 2025, é claro: os mercados digitais estão cada vez mais concentrados , com um pequeno número de empresas — majoritariamente norte-americanas — controlando uma parcela crescente da atividade global. “Trata-se de uma concentração de poder econômico, político e tecnológico sem precedentes na história do capitalismo, que ameaça a soberania dos países e a autodeterminação dos povos”, afirma Renata Mielli, coordenadora do CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil), em entrevista ao Portal Vermelho.

Sete das dez empresas mais valiosas do mundo são agora gigantes digitais: NVIDIA, Microsoft, Apple, Amazon, Alphabet (Google), Meta e Broadcom. Juntas, essas empresas não dominam apenas seus setores, mas abrangem toda a cadeia da economia digital, da computação em nuvem ao comércio eletrônico, da inteligência artificial (IA) à publicidade, passando por redes sociais e infraestrutura de dados.

Entre 2017 e 2025, a participação combinada das cinco maiores multinacionais digitais nas vendas globais mais que dobrou, saltando de 21% para 48%. No total de ativos, a fatia subiu de 17% para 35%. O domínio é tão profundo que, no mercado de IA generativa, OpenAI (apoiada pela Microsoft) detém 56,3% das visitas mensais entre os 10 sites mais acessados, seguidos pela própria Microsoft (18,5%) e Google (3,2%).

O Brasil diante do império digital

Essa concentração extrema cria barreiras intransponíveis para países em desenvolvimento. A UNCTAD aponta que altos requisitos de capital, dependência de dados e poder de computação são as principais barreiras à entrada em mercados digitais. Enquanto isso, a infraestrutura digital básica — como data centers e redes de fibra óptica — continua gravemente subfinanciada em países como o Brasil.

Diante desse cenário, segundo a gestora pública, o Brasil tem buscado enfrentar o poder dessas Big Techs por duas frentes principais: regulação e soberania tecnológica.

1. A Frente Regulatória: o Estado precisa importar suas leis

“O fato de não haver uma lei específica para regular as Big Techs não é salvo-conduto para que elas não respeitem a nossa Constituição, o Código Civil, o Código Penal, a proteção de crianças e adolescentes e outros direitos fundamentais”, afirma Renata.

As plataformas digitais frequentemente se apresentam como “neutras” ou “infraestrutura”, tentando escapar da responsabilidade legal por conteúdos, práticas anticompetitivas e protegidas de direitos. Mas, como mostra o relatório da UNCTAD, eles são, na verdade, atores econômicos poderosos com poder de mercado dominante.

No Brasil, o Poder Legislativo já deu passos importantes:

  • A Lei de Proteção de Crianças e Adolescentes no ambiente digital foi aprovada.
  • Vários projetos de lei estão em tramitação, incluindo propostas de regulação de plataformas digitais e combate à desinformação.

No Executivo, dois novos projetos de lei estão sendo preparados para avançar na regulação. Já o Judiciário tem atuado para garantir o cumprimento das leis, especialmente em processos eleitorais e na proteção de dados. “Parte do enfrentamento a esses impérios digitais é o país ter soberania para construir e aplicar suas leis.

“É urgente reduzir nossa dependência desses gigantes que controlam dados, informação, comunicação, serviços, comércio e até cadeias produtivas inteiras”, diz Renata.

2. A Frente da Soberania Tecnológica: ser produtor, não só consumidor

Além da regulação, o Brasil precisa parar de ser apenas um mercado consumidor de tecnologia e se tornar um produtor de tecnologia. É nesse sentido que o país tem investido em políticas públicas estratégicas:

  • Nova Indústria Brasil: programa que promove a transformação digital da indústria nacional.
  • Retomada da CEITEC (Centro de Inovação e Tecnologia) pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI): para retomar a produção de chips no país, mesmo que inicialmente para aplicações mais simples.
  • Plano Brasileiro de Inteligência Artificial: prevê investimentos de mais de R$ 23 bilhões nos próximos 4 anos em cinco eixos:
    1. Infraestrutura física (supercomputadores e data centers)
    2. Formação e capacitação de profissionais
    3. Fomento à indústria nacional
    4. Governança ética da IA
    5. Transformação digital do Estado

“Um exemplo concreto é o PIX”, destaca Mielli. “Uma ferramenta de pagamento digital desenvolvida pelo Banco Central, que já inspira outros países e mostra que o Estado pode liderar inovações com alto impacto social.”

Desigualdade global e risco para os países em desenvolvimento

A UNCTAD alerta que a alta concentração de mercado reforça as divisões globais, deixando países em desenvolvimento ainda mais para trás. Enquanto a Europa e a Ásia intensificam ações regulatórias — com 263 e 152 disciplinas concorrenciais, respectivamente, entre 2020 e 2025 —, a América Latina e a África ficam para trás, com apenas 64 e 16 ações .

“A aplicação da lei é desigual. E isso coloca os países mais pobres em desvantagens estruturais”, diz o relatório.

No Brasil, o risco é de se tornar um território de exploração de dados — onde empresas estrangeiras extraem valor sem gerar contrapartidas locais em emprego, inovação ou infraestrutura.

Caminho a seguir: regulação, concorrência e desenvolvimento

O relatório da UNCTAD conclui com um chamado claro:

“Uma aplicação mais rigorosa das regras de concorrência — aliada a investimentos em infraestrutura, sistemas regulatórios mais fortes, desenvolvimento de habilidades e oportunidades de financiamento para startups — é essencial para garantir que a economia digital funcione para todos, não apenas para alguns gigantes globais da tecnologia.”

Para Renata Mielli, o Brasil está no caminho certo, mas ainda há muito a fazer:

“Então, ainda há muito a ser feito para enfrentar essas Big Techs, há medidas de curto, médio e longo prazo, mas é preciso ter determinação e compreender que essa é uma agenda estratégica para a soberania no país..”

Soberania ou submissão?

O século XXI será definido pela disputa pelo controle da tecnologia. Enquanto gigantes como Microsoft, Google e NVIDIA consolidam seu domínio global, países como o Brasil têm uma escolha: aceitar a submissão tecnológica ou lutar por uma internet mais justa, diversa e sóbria .

A resposta está em mãos: regulação robusta, investimento em ciência e tecnologia, e um Estado forte e inovador. Porque a liberdade digital não será dada por quem a controla. Terá de ser conquistada.

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Last Update: 08/09/2025