Houve um tempo em que crianças trabalhavam em fábricas por longas jornadas. Mulheres grávidas eram submetidas a condições insalubres até o momento do parto. Não existiam férias remuneradas, descanso semanal, décimo terceiro salário ou sequer pagamentos dignos. Essas conquistas só foram alcançadas graças à organização coletiva dos trabalhadores e à pressão exercida sobre os patrões. Daí vem a força dos sindicatos, protagonistas fundamentais das conquistas trabalhistas no começo do século XX.
Ao longo das décadas, no entanto, esse instrumento de ação coletiva passou a perder força, e o declínio acentuou-se a partir dos anos 1980. De lá para cá, o mundo do trabalho mudou: a precarização avança, enquanto a seguridade social diminui, e um número cada vez maior de indivíduos em idade ativa é empurrado para o chamado “trabalho plataformizado”, sem direitos, férias remuneradas ou garantias em casos de doenças e acidentes.
Paralelamente, há uma ascensão da extrema-direita em vários países, regimes autoritários ganham força, e o Estado de Bem-Estar Social é deixado em segundo plano. Esses retrocessos não têm, contudo, mobilizado os trabalhadores. Na verdade, os sindicatos deixaram de ser uma referência para a maioria deles. Por que, em um momento de crise, a coletividade não consegue ganhar tração? Pesquisadores de 11 países reuniram-se para estudar o fenômeno e trazem respostas no International Strike Report, estudo recém-publicado no Brasil, ao qual CartaCapital teve acesso em primeira mão.
No País, a taxa de sindicalização caiu de 16,1%, em 2012, para 8,4% em 2023
O relatório busca mensurar o impacto dos sindicatos na vida dos trabalhadores. Esta é a segunda edição da pesquisa, idealizada pelo Instituto Internacional de História Social da Holanda, que analisa detalhadamente o cenário trabalhista em 2023 em 11 países: Argentina, Bélgica, Brasil, Chile, China, Itália, África do Sul, Turquia, Reino Unido, Estados Unidos e Uruguai. Esse grupo de nações representa quase um terço da população mundial e responde por 53% do PIB global.
Um dos autores do capítulo brasileiro, Rodrigo Linhares, técnico do Dieese e responsável pelo Sistema de Acompanhamento de Greves (SAG), destaca um ponto em comum entre os países analisados nesse estudo: “As categorias que mais fazem greves são aquelas relacionadas às políticas de cuidado”. Professores de instituições públicas e privadas são os trabalhadores que mais se mobilizam, seguidos pelos profissionais da saúde.
Na visão do sociólogo Davisson Cangussu, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), as mobilizações dos profissionais da educação e da saúde podem ser interpretadas como uma resposta à “ofensiva neoliberal planetária”, que, ao longo das últimas três décadas, impulsionou a precarização desses postos de trabalho e avançou com privatizações e terceirizações. Mesmo que o Brasil não tenha, de fato, um Estado de Bem-Estar Social como os países europeus, o desmonte nessas duas áreas é sentido pelos trabalhadores de forma mais aguda. “Atualmente, a educação tem sido alvo de intensos ataques no País, as greves demonstram uma resistência desses profissionais.”
Em 2023, o Brasil foi o segundo país com mais mobilizações trabalhistas, registrando 1.136 greves, atrás apenas do Reino Unido, que contabilizou 5.480 paralisações. No setor público, 96% das greves foram lideradas por sindicatos, federações ou confederações. Já no setor privado, esse índice cai para 72%. Isso indica que há uma mobilização considerável “por fora” da estrutura sindical, ou seja, organizada de forma independente e orgânica pelos próprios trabalhadores.
O funcionalismo público foi responsável por 55% do total de greves no País, com destaque para a atuação dos professores, especialmente aqueles empregados por governos municipais. Essa tendência se repete em outras nações: na Argentina, os servidores protagonizaram 65% das greves, e na Itália, 58%. Para Linhares, a ampla mobilização desses trabalhadores é um fenômeno mundial, motivado pelos “intensos ataques à disposição de recursos para trabalhar, ao reajuste dos salários e à precariedade a que têm sido submetidos”.
Segundo Cangussu, o Judiciário desempenha papel central nos movimentos grevistas no Brasil, especialmente no funcionalismo público. Somente em 2023, os tribunais intervieram em 36% das paralisações dos servidores públicos por tempo indeterminado e declararam 12% delas ilegais. Já no setor privado, 13% das greves por tempo indeterminado foram consideradas ilegais. O pesquisador pondera que a função do Judiciário é, sim, atuar como mediador nas negociações e, em casos de impasse, como árbitro, produzindo decisões legais sobre o resultado das greves. No entanto, em muitos casos, ele “também age como um freio à militância sindical”.

Força. Na Argentina, 100% das greves foram organizadas por sindicatos – Imagem: Luis Robayo/AFP
Apesar da piora na qualidade dos postos de trabalho e dos baixos salários, o Brasil teve uma queda drástica na adesão sindical na última década, que passou de 16,1%, em 2012, para 8,4% em 2023. O declínio começou antes da Reforma Trabalhista de 2017, mas acentuou-se a partir dela, principalmente devido à ascensão de um discurso “antissindical” que valoriza o empreendedorismo e busca soluções individuais para problemas coletivos, avalia Patrícia Trópia, professora de Ciência Política da Universidade Federal de Uberlândia. Esse fenômeno é observado em quase todo o mundo, com raras exceções. O Chile é um dos poucos países onde a taxa de sindicalização cresceu de 13% em 2005 para 19% em 2023.
Os sindicatos representam majoritariamente os trabalhadores formais, amparados pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Portanto, a redução desses postos de trabalho também explica a queda no número de sindicalizados, explica a pesquisadora. “Os entregadores autônomos vivem a contradição de optar por não ser CLT e, ao mesmo tempo, não ter autonomia nenhuma em relação às empresas de aplicativo. O sindicalismo brasileiro não alcança nem a metade da força de trabalho do País.”
Mesmo sem representatividade legal, esses trabalhadores têm aspirações coletivas e, em alguns casos, chegam a se organizar. Nos últimos anos, o País registrou diversas mobilizações de entregadores, conhecidas como “Breque dos Apps”. Mais recentemente, também ganhou força a campanha pelo fim da escala de trabalho 6×1, promovida pelo movimento Vida Além do Trabalho (VAT), sem vinculação, na origem, com sindicatos.
O discurso do empreendedorismo seduz, mas não garante direitos
“São vários os sinais de que existe, no seio da sociedade, uma pressão para que os sindicatos deem respostas. E o sindicalismo brasileiro, da forma como está organizado, não consegue atender a esses anseios”, avalia Trópia. Para a pesquisadora, o VAT é um movimento que merece mais atenção, pois a bandeira da redução da jornada de trabalho é histórica, e os trabalhadores querem ir além da mera diminuição da carga horária. “Eles exigem o direito ao descanso e ao lazer nos fins de semana.”
Professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit), vinculado à mesma universidade, José Dari Krein não participou da elaboração do relatório, mas aponta razões pelas quais os trabalhadores brasileiros parecem estar cada vez menos interessados na organização sindical. “Junto à Reforma Trabalhista veio uma campanha crítica contra os sindicatos. O ex-presidente Jair Bolsonaro fez campanha explícita contra a sindicalização”, afirma. Além disso, a rotatividade nas funções aumentou e, cada vez menos, as ocupações nas empresas oferecem perspectivas de mobilidade social. “Enfraquecidos, os sindicatos têm menos capacidade de entregar resultados, o que dificulta ainda mais conquistar adeptos para ações coletivas.”
O autor do capítulo turco do relatório, Alpkan Birelma, professor da Ozyegin University, em Istambul, acredita que o impacto do neoliberalismo sobre o movimento sindical foi brutal. “O antissindicalismo estatal e a globalização minaram os sindicatos em todo o mundo.” Diante desse quadro, os sindicatos “desenvolveram respostas limitadas para conter esse movimento agressivo do capital”. Para o pesquisador, “a crise do sindicalismo não pode ser separada da crise da esquerda como um todo”. No entanto, ele acredita que a crise econômica de 2008 e a desaceleração econômica criaram condições para uma nova onda de ações trabalhistas.
“Embora o crescente autoritarismo represente um desafio, observamos ondas significativas de greves no período pós-pandemia.” Birelma tem esperança de que essa militância possa traduzir-se na “restauração do poder da classe trabalhadora”. Isso depende, contudo, das “habilidades estratégicas” dos movimentos trabalhistas e socialistas, avalia o pesquisador. “A capacidade de organização eficaz deles não é apenas fundamental para desmantelar o neoliberalismo, mas também essencial para impedir a ascensão global do neofascismo.” •
Publicado na edição n° 1369 de CartaCapital, em 09 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ”