Por Gustavo Guerreiro*

Palavras definem fronteiras. Volta e meia a bravata separatista emerge das brumas do Sul do país. Não é nova, nem original. É um disco arranhado, que insiste em tocar a mesma música sem graça.

Desta vez, a regência coube ao governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL), que, em mais um de seus arroubos, resolveu flertar com a ideia de que o Sul — essa entidade supostamente coesa e homogênea — estaria melhor por conta própria. A premissa, como sempre, é a de um simplismo pueril.

Disse Mello, com os aplausos dos governadores do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSD), e do Paraná, Ratinho Júnior (PSD): “Daqui a pouco, se o negócio não funcionar muito bem lá para cima, nós passamos uma trena para o lado de cá e fazemos ‘o Sul é nosso país’, né? ”.

É um discurso que tem um público significativo, não podemos negar. Serve de combustível para uma ideologia construída não por suas virtudes intrínsecas, mas pela oposição a um “outro” caricaturado.

Falam em Brasil, mas o alvo preferencial é o Nordeste. O problema, e aqui está o cerne de nossa conversa, é que essa narrativa não é apenas politicamente tóxica; ela é, fundamentalmente, uma fraude econômica e um desserviço à inteligência nacional.

A falácia econômica sobre a qual se assenta o tal separatismo sulista é de uma fragilidade atroz. É inegável que os estados da região, junto com São Paulo, concentram uma parcela significativa do PIB nacional e, claro, da arrecadação de tributos federais.

O que a retórica indigente do “nós contra eles” convenientemente omite é a pergunta subsequente e essencial: para onde vai a riqueza produzida em Santa Catarina, no Paraná e no Rio Grande do Sul?

A indústria têxtil de Brusque, os polos de tecnologia de Florianópolis, a cerâmica de Criciúma ou a pujança do agronegócio do oeste paranaense não prosperam no vácuo.

Seus produtos, para existirem e gerarem lucro, dependem de um mercado consumidor de mais de 200 milhões de pessoas. Aquele mesmo Brasil, que na cabeça do governador parece ser apenas um fardo, é o principal cliente.

Uma Santa Catarina independente, por um passe de mágica que desafia a lógica e o direito internacional, teria de exportar seus produtos para o seu maior mercado, o Brasil, pagando tarifas de importação e enfrentando uma burocracia que hoje simplesmente não existe.

A ideia de que a região floresceria isolada é um delírio narcísico, um sofisma econômico que não resiste a cinco minutos de conversa com qualquer estudante de economia sério.

Mais do que isso, a infraestrutura que permite o escoamento dessa produção, como as rodovias federais como a BR-101, os portos modernizados com aportes da União e a energia que alimenta o parque fabril, oriunda de um sistema interligado nacional, não brotou do chão por obra divina.

Ela é fruto de um esforço nacional, financiado por um sistema federativo que, com todas as suas distorções e necessidades de aprimoramento (e elas são muitas, como a eterna discussão sobre a Lei Kandir), se baseia em um princípio civilizatório básico: a solidariedade.

O pacto federativo brasileiro, inscrito na Constituição de 1988, não é um contrato de contabilidade pura e simples, onde cada um leva para casa exatamente o que depositou no caixa comum. É um arranjo político e social pensado para mitigar as desigualdades abissais de um país de dimensões continentais.

Os repasses federais para o Norte e o Nordeste não são um “favor” ou um ato de caridade; são um instrumento de coesão, uma tentativa de garantir que um cidadão nascido em Exu, no sertão de Pernambuco, tenha acesso a um mínimo de dignidade, saúde e educação, assim como um cidadão nascido na abastada Balneário Camboriú. Questionar isso não é defender uma “revisão justa” do pacto; é atacar a própria ideia de nação.

Ao criar um inimigo externo (“Brasília”, “o governo federal”, “o Nordeste”), a retórica separatista oferece uma válvula de escape fácil e perigosa.

Ela nutre o estereótipo xenófobo do nordestino “acomodado”, que vive de programas sociais, ignorando a complexidade da história econômica do Brasil, que por séculos concentrou investimentos e poder no Centro-Sul, gerando o desequilíbrio que hoje se pretende corrigir.

Da Catalunha aos Bálcãs, o nacionalismo que se funda na suposta superioridade econômica ou cultural é o primeiro passo para a desintegração e o ódio. É um discurso dito nacionalista quer se sustentar na antítese dele próprio.

Curiosamente, a mais célebre peça cultural que fala em separação vem justamente do alvo preferido desse preconceito: o Nordeste.

Refiro-me à cançao “Nordeste Independente”, dos geniais Bráulio Tavares e Ivanildo Vilanova, imortalizada na voz potente de Elba Ramalho.

Seus versos são um trator passando por cima da hipocrisia: “Já que existe no Sul esse conceito / Que o Nordeste é ruim, seco e ingrato / Já que existe a separação de fato / É preciso torná-la de direito”.

Há uma diferença fundamental. A canção nordestina não é um projeto de poder, não parte de um sentimento de superioridade. Ela é um lamento, um grito, um desabafo poético de um povo historicamente alijado que, cansado de ser estigmatizado, usa a ironia como arma.

É um exercício de imaginação que pergunta: “Se somos o fardo, por que não nos deixam em paz com nossa cultura, nossa gente e nosso destino? ”.

É uma afirmação de identidade e valor, não uma proposta política concreta. Se a retórica sulista é uma agressão; a canção nordestina é uma reação.

O mais irônico, talvez, seja a ocsaião da bravata desse governador. Ela ressurge no exato momento em que o Brasil assiste assustado a elevação dos níveis dos rios, em uma possível volta da tragédia climática sem precedentes no Rio Grande do Sul, que foi a prova mais cabal e dolorosa da nossa interdependência.

Vimos um país inteiro se mobilizar. Doações, voluntários, recursos federais, a solidariedade veio de todos os cantos, de Belém a Porto Alegre, desmontando na prática o castelo de cartas do “cada um por si”.

Na hora da dor real, a fantasia separatista se desmancha no ar, revelando o que sempre foi: um argumento vazio de elites racistas.

Serve, no entanto, a um propósito político muito claro: o de ser uma cortina de fumaça. Enquanto o governador inflama sua base mais radicalizada com o aceno separatista, desvia a atenção dos problemas urgentes e reais de seu próprio estado.

Santa Catarina, longe de ser o paraíso ordeiro que a propaganda vende, enfrenta desafios gravíssimos. A desigualdade social é explícita entre o litoral desenvolvido e o interior esquecido; a violência no campo persiste.

O estado se tornou um dos principais focos de células neonazistas no país. É infinitamente mais cômodo culpar um inimigo abstrato, “o Brasil”, do que encarar as próprias contradições. É a velha tática de apontar o dedo para o vizinho enquanto a própria casa pega fogo.

Essa narrativa consolida uma base eleitoral que se sente sitiada e incompreendida. É um projeto de poder que se alimenta da desunião, garantindo votos para uma extrema-direita que vê na fragmentação do país o caminho para a sua hegemonia regional.

É preciso uma resposta à altura do desafio, como a construção de um “Pacto pela Unidade Nacional”.

Não me refiro a um documento vazio de boas intenções. Falo de uma iniciativa concreta, liderada por governadores de todas as regiões, do Sul ao Norte, que se comprometa em debater, com seriedade e dados, a reforma do pacto federativo, como a guerra fiscal entre os estados e as profundas desigualdades regionais, que precisa ser feito de forma adulta, sem a conhecida histeria da extrema direita.

O sonho separatista do governador Jorginho Mello não é apenas um projeto economicamente inviável; é um atentado contra a Constituição brasileira. É uma proposta que nos empobreceria a todos, não apenas nos cofres, mas no espírito. Um Brasil amputado de qualquer uma de suas partes seria um Brasil menor, mais fraco e infinitamente mais triste.

A questão que fica, e que deveria nos revoltar, é: até quando permitiremos que figuras tão mesquinhas ameacem o futuro de uma nação que só pode ser grande se for inteira?

Como derradeira inspiração, a síntese perfeita do Brasil na canção “João e Maria”, composta pelo carioca Chico Buarque e o paraibano Sivuca, e magistralmente interpretada pelo gaúcho Yamandu Costa e o pernambucano Dominguinhos. Confira.

*Gustavo Guerreiro, doutor em políticas públicas e pesquisador do Observatório das Nacionalidades.

*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Last Update: 27/06/2025